Gustavo me interpelou na Rua José Loureiro. Ele queria saber de onde vinham minhas histórias. Eu disse que eram da realidade. Ele hesitou e eu o convidei para uma volta pelas ruas da cidade. Ele disse que não ia andar por aí. Eu insisti para que fosse até a estação tubo da Praça Eufrásio Correia e lá pegássemos o expresso para o Mossunguê. “Alguma coisa vai acontecer no caminho”, eu disse. Eu sabia do risco – não é toda hora que acontece algo que mereça atenção. Ele aceitou o desafio e em vez de ir para o escritório na Rua Marechal Deodoro, foi comigo até a estação tubo. Ele estava convicto de que não aconteceria e eu não tinha certeza de nada.

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Mas eu me senti otimista quando peguei caneta e bloco de anotações. Certamente Gustavo achou que eu encenava. Em parte encenava, porque nem sempre faço anotações. Eu confio na memória para estes fins. Fomos em silêncio. Ao chegar à estação tubo, ela estava meio vazia, em vez do atropelo de pessoas entrando e saindo apressadas. Fomos para a ala do expresso para o Mossunguê. Foi chegando gente e uma senhora arcada, que parecia sair de um conto dos Irmãos Grimm, praguejou: “Porcaria!”. Vinha com lenço na cabeça e bengala, além de bolsa que parecia cesta de frutas. Eu pensei: “Esta senhora é uma personagem”.

Gustavo me olhou desconfiado. Ele parecia ter um mau pressentimento. Uma mulher ao meu lado apiedou-se da velha, que parecia procurar alguma coisa na bolsa, se aproximou e perguntou: “A senhora precisa de ajuda?”. A velha respondeu mal humorada: “Não! Preciso de dinheiro!”. Eu peguei a caneta e anotei a frase. Ela poderia ser útil adiante. Gustavo me olhou com censura. A outra mulher se afastou humilhada e ofendida. Perto de mim, sussurrou: “As pessoas hoje em dia estão agressivas. Não há delicadeza. Não adianta ser gentil. Eu só quis ajudar”. Eu concordei com um meneio de cabeça, enquanto também anotava as palavras dela.

Em seguida, tirei uma nota de cinco reais, me adiantei e perguntei para a velha: “A senhora aceita uma nota de cinco reais?”. Ela me olhou com expressão malévola, pegou os cinco reais com um golpe rápido e disse: “Claro que aceito! Tá sobrando é?”. Gustavo observou com perplexidade. Ele não acreditou na sucessão de acontecimentos triviais, porém inquietantes. Ele devia me achar obsceno. Então a velha fez algo repugnante: ela deu três pancadas fortes no abdômen e seu estômago fez um ruído alto análogo ao de uma nave espacial de filmes dos anos 50. Eu lembrei que minha avó fazia algo semelhante para soltar gases. Muitos velhos fazem isso.

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Eu perguntei a Gustavo: “O que você acha disso?”. Foi o fim para ele: “Vamos embora antes que ela decole”. Ele parecia tomado por repentino pânico. Saiu apressado e se não o seguisse, me deixaria sozinho. Eu argumentei: “Vamos até o Campina do Siqueira para ver o que acontece!” Ele não respondeu e ainda na estação tubo uma garota me interpelou: “Por favor!”. Eu parei e Gustavo também parou. Ela perguntou: “O senhor é mórmon?” Foi então que eu reparei que tanto eu quanto Gustavo estávamos de camisas brancas e a pergunta fazia sentido. Ela pensou que fossemos missionários. Eu respondi: “Não querida, eu sou vegetariano”.

Quando saímos da estação, Gustavo sentiu-se mal. Estava com náuseas. Ele agitou as mãos e disse: “O mundo está ficando louco”. Eu disse que concordava. Mas disse que estas pessoas não eram más – eram boas e normais. Voltamos em silêncio. Antes de ele ir para o escritório e eu voltar para a redação, ele perguntou, meio conspirador: “Você vai escrever sobre o que aconteceu?”. Eu disse que sim. Ele pediu: “Não vá dizer que eu me chamo Gustavo. Eu tenho uma reputação a zelar”. Eu disse que tudo bem, que ia dizer que ele se chamava Alfredo.

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