A viúva que virou uma bela odalisca

Fui ontem ao Shopping Mueller matar um sanduba. Quando entrei no ônibus, levei um susto: nunca vi tantas garotas com as pernas de fora em Curitiba. Shorts minúsculos. Coisa de louco! O calor, definitivamente, tem aspecto positivo. Até o motorista estava de bermuda, mas as pernas do coitado eram horríveis. Na fila para pagar e depois pegar o sanduba, mesma coisa. Na minha frente duas donas conversavam. As duas, para não ser repetitivo, usavam roupas leves. Muito leves. A primeira do Abranches. Ela perguntou para a outra do Guabirotuba: “Então teu marido morreu, menina?”. A outra respondeu: “Morreu, coitado! Teve AVC e caiu duro”. Fazia tempo que as duas não se viam porque a primeira lamentou: “Pobre Antenor!”. A outra respondeu sem jeito: “Eu me separei do Antenor. Quem morreu foi o Reginaldo”. A outra sem graça, não perdeu a frase: “Pobre Reginaldo”.

A do Guabirotuba era viúva. Acreditem: ela parecia uma odalisca. O calor está demais e roupas leves ajudam a suportá-lo. E nenhuma viúva sai por aí vestida de preto dos pés à cabeça – ou vice-versa – como esposa de um taliban. Mas encontrar uma viúva parecida com uma odalisca chega a ser chocante. Ou prova de que o instituto da viuvez foi definitivamente pra cucuia. Enquanto caminhava para o jornal, pensei na viúva que virou odalisca e cheguei à conclusão de que não há mais viúvas hoje em dia. A viuvez, com trauma e peso de cinquenta anos ou mais, foi extinta. Viúva de hoje só põe luto para ir à festa chique, porque um pretinho básico é elegante e cai bem em qualquer ocasião. Fora isso, nem morta. Ainda mais com este calor.

Então eu me lembrei de um livro que eu li faz tempo. De Lynn Caine, livro de 1974. Ela fala sobre a morte do marido Martin Caine, em 1971. O livro é um relato doloroso de uma viúva: “Depois que meu marido morreu, senti-me uma dessas conchas espiraladas que o mar joga na praia. A gente pode enfiar um graveto pelo túnel sinuoso e penetrar em todos os cantos. Não encontra nada”. Declaração sutil, elegante e sincera sobre dor e ausência. Mas que soa estranha hoje. Ninguém sofre hoje com tamanha intensidade. Em parte porque vivemos num mundo individualista. Na base do cada um por si. Além disso, nos últimos cinquenta anos o mundo mudou, o que contribuiu para a viuvez não ser uma espécie de morte em vida. A família patriarcal que dependia em tudo do marido foi trocada por outra sem perfil definido. As mulheres conquistaram o mercado de trabalho e muitas são responsáveis pelo sustento familiar.

Além disso, o divórcio banalizou as relações maritais que hoje duram poucos anos – quando não passam de alguns meses. Marido antes era por toda vida. E viúva, quando perdia o marido, tinha dezena de filhos, estava gorda e feia. Claro que uma viuvinha bonita era cobiçada. Mas viúvas como Monica Bellucci no filme Malèna, estas eram raras. E as velhas viúvas, feias e gordas só tinham que lamentar a perda do marido: quem ia sustentar aquele monte de gente? Hoje em dia as mulheres ficam sem maridos e os homens sem mulheres muito mais em decorrência do divórcio. Claro que no auge da paixão e do afeto se um morre, o outro vai sentir o golpe. Mas o golpe é superado e a viúva ou o viúvo se recompõe com um novo casamento, principalmente se ela ou ele for jovem.  

Hoje milhares de pessoas – homens e mulheres – estão no terceiro ou quarto casamento, com filhos de outras uniões, o conjuge também vem de outras uniões e assim por diante. Num universo de tantas ligações amorosas, existe dor quando ocorre algo como a morte de alguém com quem se conviveu de forma íntima, mas a intensidade não é a mesma da perda de alguém de uma relação duradoura, única e marcada pela interdependência emocional e financeira. A viuvez que existia não existe mais. Pelo menos em grande parte da sociedade. A velha viuvez morreu. E não deixou ninguém para chorar por ela. A viuvinha de hoje é cheia de charme, porque a vida continua. Hoje se conta nos dedos, talvez da mão direita, quem repita a frase de Lynn Caine: “Nossa sociedade é organizada de tal maneira que a maior parte das mulheres perde a identidade quando seus maridos morrem”. Era. Hoje em dia a única identidade que elas – ou eles – perdem e a Carteira de Identidade. Mas esta dá para tirar segunda via. E terceira, se perder a segunda.