A lição que veio da Coreia

Quando vejo as peripécias da “dinastia Kim” na Coreia do Norte, lembro de dois coreanos que foram meus colegas de classe no ensino fundamental. Os irmãos se davam bem com todo mundo, mas sofriam com a mania que o brasileiro tem de achar que todo asiático é japonês. Claro que era bullying. Mas tem que considerar a força que a colônia japonesa sempre teve no imaginário nacional, fruto do processo de imigração maciço ocorrido a partir do início do século passado. Os coreanos sentiram isso na pele. Eram muito educados e comunicativos e tentavam desfazer o equívoco, mas era inútil. Sempre havia alguém disposto a chamá-los de japoneses.

Naquela época (anos 1970s, auge da ditadura), era obrigatório cantar todos os hinos, inclusive o Hino da Independência. A piazada não perdia a oportunidade de pegar no pé dos coreanos. Ao invés de cantar “Já podeis, da Pátria filhos, ver contente a mãe gentil…”, a turma fazia coro: “Japonês da Pátria filhos”… E tinha aqueles que ainda emendavam: – Viram, vocês já podem ver contente a mãe gentil!

Foi por causa desta brincadeira martelada dia após dia que o bicho pegou. Um dia os coreanos se encheram e partiram para cima de uns meninos cravos. Nada demais no incidente, graças a intervenção do inspetor Newton que mantinha a molecada na linha.

A tia que tomava contas dos garotos foi à escola e demonstrou preocupação com o que havia acontecido, sobretudo porque os irmãos eram bem disciplinados e só tiravam notas altas.

A briga foi um divisor de águas e fomos saber por que na aula de geografia. A professora Joseli, uma senhora muito decidida, teve a brilhante ideia de usar a história para esclarecer brasileiros e coreanos. Fixou o Mapa Mundi na parede e em poucos minutos constatou o óbvio: a nossa ignorância completa sobre a península coreana.

Além de aprender para o resto da vida como ocorreu a Guerra da Coreia, resultado da disputa de poder entre Estados Unidos e a ex-União Soviética a partir do fim da 2.ª Guerra Mundial e a consequente divisão entre norte e sul, mais importante foi constatar as consequências de um conflito sobre um povo. Nosso colegas eram exemplos vivos de como uma guerra destas proporções pode dilacerar famílias de todas as formas. Os pais deles haviam ficado na parte Norte, enquanto eles, a tia e um avô conseguiram sair. Escolheram o Brasil como nova pátria, estavam contentes com a acolhida, mas a felicidade só seria completa quando conseguissem reunir toda a família.

E até hoje esta é a luta de milhares de coreanos que vivem sob o jugo de ditadores insanos que pertencem à mesma família e se revezam no poder. Mudamos completamente o tratamento com nossos colegas de classe. Estendemos toda a nossa solidariedade e a torcida de dias melhores para o seu povo. Foi um dia inesquecível! Era a primeira vez que uma guerra chegava tão perto de nós com seu efeito mais nefasto: separar pessoas inocentes que se amam pelo motivo mais torpe, que é busca cega do poder a qualquer custo.

* Miguel Ângelo de Andrade publica a coluna ‘Pelas ruas da cidade’ durante as férias de Edilson Pereira.