Entre o blues e o inferno: Pecadores mistura música, horror e crítica social na obra mais ambiciosa de Ryan Coogler

Em Pecadores, Ryan Coogler transforma um clube de blues no Mississippi em palco para uma das narrativas mais potentes e ousadas do cinema recente — uma história que costura crítica social, terror sobrenatural e celebração da cultura negra americana.

Ambientado nos anos 1930, período em que as Leis Jim Crow ainda regiam os Estados do sul dos Estados Unidos, o filme mergulha em um dos capítulos mais sombrios da história americana. Essas leis institucionalizavam a segregação racial em espaços públicos, escolas, transportes e serviços, criando uma realidade profundamente desigual para a população negra. O racismo não era apenas social, mas legalmente sustentado — e isso se traduz de forma visceral na ambientação do filme, onde cada rua, cada olhar e cada gesto carrega o peso dessa opressão sistematizada.

A trama acompanha os irmãos gêmeos Elijah e Elias Moore — ambos interpretados por Michael B. Jordan — conhecidos como Fumaça e Fuligem, que retornam à sua cidade natal no Mississippi com o objetivo de abrir um clube de blues. Para isso, eles contam com a ajuda de colegas e antigos companheiros, enquanto enfrentam desafios que vão muito além do racismo e da pobreza. Essa volta ao passado é repleta de encontros tanto traumáticos quanto divertidos, revelando um mosaico de memórias, conflitos e esperanças.

Nesse contexto histórico, a Ku Klux Klan surge como força antagonista concreta e simbólica. Fundada logo após a Guerra Civil Americana, a Klan se tornou um dos pilares da perpetuação do terror branco sobre comunidades negras no sul dos EUA. Em Pecadores, a organização supremacista não atua apenas como ameaça física, mas também como manifestação da tentativa de sufocar qualquer expressão de liberdade negra — inclusive a arte. O clube de blues que os irmãos Elijah e Elias tentam abrir representa, assim, mais do que um empreendimento comercial: é uma trincheira cultural, um refúgio contra a brutalidade e uma afirmação de identidade.

A escolha do blues como centro da narrativa não é casual. Nascido nas plantações do sul americano, o gênero tem raízes profundas nas dores e resistências do povo negro. Mais do que um estilo musical, o blues é um testemunho cantado de sofrimento, fé, desejo e sobrevivência. Desde o início do século XX, diversas lendas passaram a cercar os artistas do gênero — como a célebre história de Robert Johnson, que teria vendido sua alma ao diabo em uma encruzilhada em troca de talento. Pecadores brinca com essa mitologia ao literalmente colocar a música como portal entre mundos, conectando épocas e enfrentando forças sobrenaturais.

A ambientação detalhada do filme reflete de forma dolorosa a segregação racial da época e a luta por espaços de liberdade para a comunidade negra. O clube, nesse sentido, torna-se um símbolo de resistência, um lugar onde a música e a cultura afro-americana podem florescer longe da opressão. A principal atração do local é o jovem músico Sammie Moore, interpretado por Miles Caton, cuja sensibilidade artística é capaz de romper as barreiras do tempo e espaço — literalmente. Em uma das sequências mais belas e emocionantes do filme (e talvez do ano), Sammie traz para dentro do clube ecos de outras épocas, culturas e vozes, compondo uma experiência sensorial e espiritual arrebatadora.

A trilha sonora, composta por Ludwig Göransson, é um personagem à parte. Guiando emocionalmente o espectador por cada cena, a música reforça a importância do som como elemento de conexão e resistência histórica. A coreografia, os figurinos e a direção de arte completam a atmosfera quase onírica que se forma ao longo da projeção, criando uma obra de múltiplas camadas.

Mas Coogler não se contenta em apenas contar uma história de superação e cultura. A partir de determinado ponto, o filme mergulha no mais puro terror, revelando que a ameaça à comunidade não é apenas humana, mas também sobrenatural. A transição entre os gêneros — do drama histórico ao horror místico — é feita de forma surpreendentemente fluida, mantendo a coesão narrativa e aprofundando ainda mais a crítica social. O medo, aqui, não é apenas de fantasmas, mas das marcas profundas deixadas pela escravidão, pela violência e pelo preconceito institucionalizado.

Michael B. Jordan, parceiro frequente de Coogler desde Fruitvale Station, entrega uma performance multifacetada ao interpretar dois irmãos com personalidades distintas, porém interligadas por uma mesma ferida ancestral. A parceria entre ator e diretor, que já rendeu momentos marcantes em Creed e Pantera Negra, atinge aqui seu ápice em termos de complexidade e ambição. O elenco de apoio, que inclui Hailee Steinfeld, Jack O’Connell, Delroy Lindo e a magnífica Wunmi Mosaku, também contribui para a riqueza da narrativa, cada um trazendo camadas adicionais aos personagens e ao enredo. Mesmo quando a história se apoia em algumas conveniências para avançar, o impacto emocional permanece forte — o destino de cada personagem é sentido na pele pelo espectador.

Além da trama central, Pecadores estabelece uma mitologia própria, sugerindo a possibilidade de expansão para outras histórias e períodos. A cena pós-créditos indica que há muito mais a ser explorado nesse universo, o que pode ser promissor para futuras produções — especialmente se mantiverem o mesmo nível de rigor artístico, emocional e simbólico.

No fim das contas, Pecadores é uma obra que desafia classificações fáceis. É um filme que pulsa com energia, tesão, paixão e uma profunda compreensão das complexidades da experiência negra americana. Ryan Coogler solidifica sua posição como um dos cineastas mais importantes da atualidade, entregando uma narrativa que é, ao mesmo tempo, entretenimento de qualidade e reflexão necessária. Uma celebração da arte como forma de resistência, da cultura como força vital e do horror como espelho das nossas piores verdades históricas.

E você? Já viu Pecadores? O que achou do filme. Conta pra gente.


Serviço – Pecadores

  • Título original: Sinners
  • Direção: Ryan Coogler
  • Roteiro: Ryan Coogler e Joe Robert Cole
  • Duração: 2h14
  • Elenco: Michael B. Jordan, Miles Caton, Hailee Steinfeld, Delroy Lindo, Jack O’Connell, Wunmi Mosaku
  • Ano de produção: 2025
  • Distribuição: Warner Bros.
  • Classificação indicativa: 16 anos
  • Onde assistir: Em cartaz nos cinemas brasileiros

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