O Brutalista: entre fantasmas e o concreto

Temos aqui uma obra ambiciosa que se destaca pela forma intensa como aborda a luta de um imigrante em meio à realidade da sociedade americana.

Dirigido por Brady Corbet, O Brutalista inicia com uma imagem que sintetiza seu cerne temático: a Estátua da Liberdade invertida, flutuando sobre um mar escuro como um alerta. Mais que um truque visual, o símbolo anuncia um mundo onde valores se corrompem, promessas se quebram e o sonho americano se revela uma miragem para aqueles que chegam de fora. É nesse cenário deslocado que László Tóth (Adrien Brody) desembarca, um arquiteto judeu húngaro e sobrevivente do Holocausto cuja busca por recomeço nos EUA se transforma em um labirinto de humilhações e conflitos identitários.

Adrien Brody encontra em László um papel que exige mais que técnica: exige a exposição de cicatrizes. Seu corpo curvado, a voz rouca e os gestos contidos traduzem a carga de um homem que sobreviveu ao horror nazista apenas para ser engolido pela indiferença do capitalismo. Brody não interpreta; ele encarna a aspereza de quem luta para não ser reduzido a um fantasma em sua própria vida.

Essa aspereza, aliás, ecoa na própria arquitetura que dá nome ao filme. O brutalismo, movimento surgido no pós-guerra, celebra o concreto aparente, as formas geométricas cruas e a ausência de ornamentos — uma estética que prioriza a verdade dos materiais sobre a ilusão do conforto.

Em O Brutalista, essa estética transcende o visual: László projeta edifícios que são extensões de sua alma. Suas construções, blocos maciços e janelas estreitas, parecem erguer-se sobre traumas, como se cada vigia exposta fosse uma cicatriz do passado. A vida do arquiteto, assim como sua arte, é brutalista: seca, direta, sem espaço para floreios. Ele não negocia; resiste. Não se explica; existe.

É nesse contexto que entra Harrison Lee Van Buren, um magnata interpretado com ambiguidade por Guy Pearce. Van Buren contrata László para construir um memorial, supostamente em homenagem a sua mãe, mas o projeto logo se revela um exercício de vaidade.

Pearce traz ao industrial uma aura de falsa generosidade — ele acredita, talvez sinceramente, que está redimindo seu legado, mas sua riqueza o cega para o fato de que está explorando o trauma alheio como commodity. A dinâmica entre os dois homens não é mero conflito de classes; é um embate entre a arte como redenção e a arte como ferramenta de poder.

Já Felicity Jones, cuja carreira oscila entre personagens delicados (A Teoria de Tudo) e resilientes (Rogue One), entrega uma atuação minimalista e devastadora como Erzsébet, a esposa deixada para trás na Hungria. Sua chegada ao EUA, no meio do filme, não traz alívio, mas expõe rachaduras.

As cenas entre ela e Brody são carregadas de diálogos, desejo, repulsa: Erzsébet não é a esposa abandonada, mas uma sobrevivente de outra guerra — a do abandono. Jones transmite, com micro expressões, a dor de quem percebe que o marido trocou um campo de concentração por outro, metafórico, no qual a liberdade é tão inatingível quanto na Europa arrasada.

A estrutura do filme, dividida em duas partes por um intervalo, reflete a dualidade da experiência migrante: a primeira metade, focada na solidão de László, é claustrofóbica, com planos fechados em corredores de concreto e escritórios gelados. A segunda, com a chegada de Erzsébet, introduz movimento — mas também revela que o casal não reconstrói nada; eles colidem, como náufragos que não sabem mais como se salvar.

Aqui, a arquitetura brutalista não é apenas pano de fundo, mas personagem. As estruturas criadas por László — e, por extensão, pelo próprio filme — funcionam como metáforas de sua psique. O memorial que ele projeta para Van Buren, por exemplo, é subterrâneo, quase um bunker, como se o arquiteto estivesse enterrando suas próprias memórias – algo que o filme desnecessariamente acaba por explicar em sua conclusão. A ironia é que o peso esmaga justamente quem tenta carregá-lo: László, ao se ver obrigado a compactuar com o sistema que o oprime, torna-se prisioneiro de sua própria obra.

A trilha sonora de Daniel Blumberg, repleta de ruídos industriais e cordas dissonantes, acentua essa atmosfera de desespero contido. Não há melodia, apenas texturas — como se a música fosse feita do mesmo concreto que László manipula. Em certos momentos, os sons se confundem com o ambiente, borrando a linha entre realidade e angústia interna.

O clímax do filme, no qual László, de forma pouco sutil, desaparece de sua própria narrativa, é uma metáfora tão potente quanto dolorosa. Sua derrota não vem de um vilão, mas de um sistema que consome idealistas e os cuspe como entulho. A inversão inicial da Estátua da Liberdade ganha aqui seu sentido pleno: o sonho americano, para aqueles que vêm de fora, muitas vezes é um espelho distorcido. O que resta não é a liberdade, mas a luta por um lugar em um mundo que insiste em negar humanidade aos diferentes.

O Brutalista é um filme que exige engajamento. Como o concreto que seca lentamente, ele não se revela de imediato, mas fixa-se na memória por meio de camadas. Em sua aspereza, porém, reside uma beleza singular: a de um filme que, como seu protagonista, recusa-se a ser ignorado.


O Brutalista
Direção: Brady Corbet
Ano: 2024
Elenco Principal: Adrien Brody (László Tóth), Felicity Jones (Erzsébet Tóth), Guy Pearce (Harrison Van Buren)
Duração: 3h40min
Sinopse: Um arquiteto sobrevivente do Holocausto enfrenta os fantasmas do passado e a frieza do capitalismo ao trabalhar para um magnata em Nova York.


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