Sim, o filme na prática poderia funcionar como uma versão estendida de algum segmento da série de terror V/H/S, e se alonga um pouco demais na hora de terminar. Fora isso, porém, Entrevista com o Demônio é um belíssimo mockumentary [um falso documentário] de horror sobre um apresentador que vai aos extremos para ampliar sua audiência e que resolve chamar uma jovem que supostamente tem um caso com o tinhoso.
A obra dos diretores Cameron e Colin Cairnes trabalha diversas camadas do horror contemporâneo com competência, com piscadelas a grandes mestres do gênero e uma crítica bem incisiva ao entretenimento apelativo que há décadas domina a programação televisiva. Mais do que isso, porém, o filme constrói, como poucos, uma atmosfera crescente de terror e tensão, desembocando em um clímax tão propositalmente artificial quanto perturbador.
As referências estão ali e são claras. Do Exorcista de William Friedkin, o filme resgata especialmente as representações de possessão demoníaca que redefiniram o gênero de horror. Da mesma forma, é visível a presença de David Cronenberg em alguns momentos, no uso do horror corporal e das transformações bizarras que remetem a obras como o seu Videodrome ou Scanners. Essa mescla de estilos contribui para uma experiência cinematográfica rica e multifacetada.
BATE BAPO COM O CRAMUNHÃO
O histórico de filmes sobre possessão demoníaca e relações com o maligno é vasto, passando pelo já citado O Exorcista até produções mais modernas como Invocação do Mal ou mais recentemente A Última Profecia e Imaculada – dois ótimos filmes sobre o tema, aliás.
Estes filmes exploram o medo primordial que o conceito do demônio causa na sociedade, um temor enraizado em séculos de relatos e dogmas tanto na mitologia como na religião. O demônio – para quem acredita nele, evidentemente – surge como uma personificação do mal absoluto e do desconhecido, desencadeando narrativas que mergulham no horror psicológico baseado no confronto didático entre o bem e o mal.
As inúmeras representação do demônio no cinema servem não apenas para assustar ou perturbar, mas também para refletir ansiedades culturais e sociais milenares, um enfrentamento de um medo primordial, mas com a presença da tela branca como rede de segurança.
Entrevista com o Demônio utiliza esse medo de maneira eficaz, enquanto critica a forma como a mídia sensacionalista explora o pânico e a superstição para atrair audiência: algo infelizmente que não está distante no século passado como representado no filme, mas que ainda encontra espaço na TV contemporânea, sempre buscando chocar e impressionar o público, ávidos por uma catarse cada vez mais pessoal.
Outro ponto que faz com que o filme seja extremamente relevante é seu protagonista. David Dastmalchian tem a chance de demonstrar aqui todo o seu talento e versatilidade. Com uma carreira marcada como eterno coadjuvante ‘que você lembra já ter visto’ em filmes como Homem-Formiga, Duna, O Esquadrão Suicida e O Cavaleiro das Trevas, entre outros, aqui ele interpreta um apresentador desesperado por audiência, mergulhando nas profundezas do horror e da moralidade dúbia. Sua performance é ao mesmo tempo perturbadora e cativante, solidificando sua posição como um dos atores mais interessantes e talentosos de sua geração – e que finalmente está tendo a sua oportunidade de ourto.
Entrevista com o Demônio vai além do simples entretenimento de horror. Por meio de suas múltiplas camadas, easter eggs inteligentíssimos e referências cinematográficas clássicas, o filme oferece uma crítica mordaz à sociedade contemporânea e à obsessão pela audiência a qualquer custo – uma experiência inesquecível, tanto para os amantes do horror quanto para aqueles que apreciam uma narrativa bem construída e capaz de trazer questionamentos sobre temas tão díspares quanto fascinantes.
É o melhor terror do ano? A disputa está acirrada, mas com certeza vai estar entre os meus cinco melhores. Vamos aguardar.
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Entrevista com o Demônio (Late Night with the Devil)
Ano de Produção: 2023
Diretores: Colin Cairnes e Cameron Cairnes
Elenco: David Dastmalchian, Ingrid Torelli, Fayssal Bazzi, Georgina Haig
Duração: 89 minutos
Nota: 🎦🎦🎦🎦½
