O mais novo filme de Sean Baker reafirma a habilidade do diretor em explorar as vidas de personagens marginalizados com uma autenticidade rara no cinema contemporâneo. Conhecido por obras como Tangerine e o sublime Projeto Flórida, Baker volta a direcionar sua lente para uma protagonista à margem da sociedade, longe dos clichês de vítima ou heroína.
Desta feita, a história gira em torno de Ani (ou Anora), interpretada com brilho por Mikey Madison (Era uma Vez em Hollywood, Pânico 5), uma dançarina exótica e acompanhante ocasional que se envolve com Ivan (ou Vanya, para os íntimos), herdeiro carismático e problemático de um oligarca russo.

Desde o início, fica claro que Ani transcende as aparências. Não se trata de uma jovem ingênua ou de uma romântica em busca de redenção, mas de uma mulher astuta e consciente de sua realidade, qualidade refletida na desenvoltura com que navega entre os ambientes que habita.
Baker constrói um contraste poderoso entre o clube noturno claustrofóbico onde Ani trabalha e os espaços opulentos da mansão de Ivan, repleta de espelhos e detalhes luxuosos. A ambientação não apenas expõe a superficialidade do mundo do protagonista masculino, mas também o vazio por trás de seu hedonismo desenfreado, sustentado por riqueza e festas excessivas.
Ivan serve como um espelho de uma geração que tenta preencher seu vazio existencial com opulência e indulgências. Ele atrai e mantém amigos por meio de fortunas gastas em festas absurdas e uma fachada generosa que, no fundo, revela solidão e insegurança. É nesse universo de exageros que Ani vislumbra uma oportunidade, ainda que desconfiada: talvez, ao se aproximar de Ivan, ela escape das restrições que a sufocam. Quando ele a convida para ser sua acompanhante por uma semana, o filme parece flertar com uma narrativa ao estilo Uma Linda Mulher, mas Baker subverte rapidamente essa expectativa.

A relação entre Anora e Ivan assume contornos inesperados quando, em meio a uma viagem, ele decide casar-se com ela em Las Vegas. A partir daí, o filme abandona qualquer previsibilidade e mergulha em uma comédia caótica e quase surreal. A chegada dos capangas da família oligarca de Ivan intensifica o absurdo, culminando em sequências hilárias – como uma cena extensa na mansão que expõe a desconexão do herdeiro com a realidade e se torna um dos momentos mais genuinamente divertidos do ano.
Mesmo com o tom cômico, Anora não se furta a mergulhar em vulnerabilidades. Em um ápice emocional, Ani desaba, revelando uma fragilidade humana que contrasta com sua persona inabalável, momento em que ela finalmente é vista como um ser humano pelo silencioso Igor (Yura Borisov), o único que provavelmente entende que eles são, de certa forma, iguais.

Mikey Madison brilha nesses instantes, entregando uma performance repleta de nuances, enquanto os personagens ao seu redor são (quase todos) propositalmente caricatos – uma escolha de Baker para destacar a dualidade entre o exagero do mundo de Ivan e a autenticidade da protagonista.
Sean Baker constrói Anora como uma obra que mescla crítica social e comédia absurda, desconstruindo tanto o sonho americano quanto a ideia de redenção romântica. Ao retratar os excessos de uma geração perdida e as lutas diárias dos marginalizados, o filme se torna uma experiência instigante e memorável. Em sua essência, Anora é um retrato hilário, trágico e imprevisível de um mundo onde tudo parece à venda – exceto certos valores que nem o dinheiro compra.
ANORA (2024)
Direção: Sean Baker
Elenco: Mikey Madison, Yura Borisov, Mark Eidelstein
Duração: 2h19
