Já posso ouvir o gralhar dos puristas pedindo a minha cabeça – sem, nem ao menos, terminar de ler este texto. Quando a polêmica veio à tona no último dia 04, a escritora Patrícia Secco não imaginava suas palavras teriam tamanha força (contra ela mesma). Acusada de deturpar O Alienista, de Machado de Assis (1839 – 1908) e A Pata da gazela, de José de Alencar (1829 – 1877), Secco é responsável por adaptar os icônicos textos para o público jovem. A prática, como se sabe, não é incomum – tampouco ilegal ou merecedora de um linchamento moral nas redes sociais e em alguns jornais.
Ao ler as notícias de que uma “escritora muda obra de Machado de Assis para facilitar a leitura” pensei quase instantaneamente: mas isso não é uma mera adaptação? Pois e não é que era!? O grande erro de Patrícia Secco é não remodelar o texto de dois “intocáveis” da literatura brasileira, mas como expor esse processo aos jornalistas. Frases como “entendo por que jovens não gostam de Machado de Assis” e “a ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil” não pegaram bem. Hordas de literatos canibais já preparavam o sacrifício da escritora por meio de posts nada amigáveis, matérias pouco confiáveis e textos sem fundamentos.
Não estou aqui para defender nada e nem ninguém, muito menos duas adaptações que não li, mas a questão é outra: a legitimidade de se adaptar uma obra clássica. Com todo o burburinho sobre tema me lembrei que a primeira vez que li Robinson Crusoé, de Daniel Defoe (1660 – 1731) foi no auge dos meus 12 anos, em uma edição adaptada por Werner Zotz e publicada na “Série Reencontro” da Editora Scipione. A coleção, que por sinal, existe até hoje e é recomendada por diversas escolas, foi responsável por me colocar em contato com textos que, possivelmente, estariam fora do meu alcance naqueles tempos.
Como se isso não fosse suficiente, me lembro, sem nenhuma névoa na memória, que uma das mais importantes escritoras brasileiras é também responsável por excelentes adaptações. Clarice Lispector (1920 – 1977), talvez em tempos de vacas magras, quem sabe as mesmas que a fizeram escrever o Correio feminino, burilou algumas obras-primas da literatura universal. Já pensou na felicidade de Jonathan Swift (As Viagens de Gulliver) e de Júlio Verne (A Ilha misteriosa) ao ver seus textos “recriados” por alguém do calibre de Clarice? Seria, pela lógica hedonista, Clarice também uma pecadora?
Outras questões
Essa não é a primeira vez que O Alienista ganha novas formas. O texto do Bruxo do Cosme Velho, da primeira vez, recebeu um tratamento mais ousado. Não só teve seu texto alterado, modificado para uma linguagem contemporânea, mas teve também seu título mudado, passando a se chamar: O Mistério da casa verde. E quem seria o autor de tamanha heresia? O escritor gaúcho Moacyr Scliar, morto em fevereiro de 2011.
O Mistério da casa verde é uma adaptação estupenda feita para a série “Descobrindo os clássicos”, sob a tutela da editora Ática. Recomendada por escolas, a coleção tem também uma adaptação de outra obra machadiana, desta vez, Dom Casmurro, que passou a se chamar Dona Casmurra e seu tigrão. O pecado ficou por conta de Ivan Jaf. Para concluir que as adaptações não são tão feias – e nem tão raras – como tem se pintado nos últimos dias, provo que Machadinho era também um adepto da prática.
Para os desavidados, a controversa história de amor entre Bentinho e Capitu não é algo assim tão original. A susposta traição não é algo assim tão único. Machado nunca escondeu – e nem pensou e,m fazer – que Dom Casmurro carrega as tintas de Otelo, a famosa peça de William Shakespeare que tem os mesmos elementos encontrados na prosa do brasileiro – que por vezes cita (diretamente) o ídolo inglês em seu romance.
E vamos percebendo que o conceito de adaptação é muito menos profano do que muito beato literário tem dito ser.