HQ é literatura?
Sim – e não! Pensar em literatura é imaginar um livro com o mínimo possível de ilustração e o máximo que couber de texto. Essa visão maçante da literatura tem caído por terra, seja pela incursão de novas mídias – como tablets e celulares – e também por conta de novas estruturas no bom e velho papel. As histórias em quadrinho, que nada têm daquela ideia juvenil do gibi, podem ser um dos exemplos mais fortes da literatura contemporânea.
Há quem rebata essa convergência e defenda uma separação total entre literatura e HQ. Dizer, entretanto, que toda graphic novel é literatura é um generalismo tão grande quanto dizer que não é. Mas ao olhar a obra de Chris Ware, um dos maiores autores de HQs do mundo, é difícil não estabelecer esse paralelo. Seus livros mais famosos, “Jimmy Corrigan: o menino mais esperto do mundo”, lançado por aqui em 2009 e já esgotado, e “Building stories”, que deve chegar ao Brasil no ano que vem, tiveram sua profundidade e complexidade narrativas comparadas a “Ulysses”, de Joyce. “Building stories”, por sinal, permite vários começos e finais, algo ao molde de “Jogo da amarelinha”, de Julio Cortázar, Príamo da literatura argentina.
Na terra do samba, um dos melhores exemplos de HQ com um quê (me perdoe trocadilho) literário é “Cachalote”, uma parceria do cartunista Rafael Coutinho, filho do Laerte, e do escritor Daniel Galera, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura com “Barba ensopada de sangue”.
A Gênese
Veja, essa relação está cada vez mais estreita. Quando Will Eisner (1917 – 2005) começou a estabelecer ligações mais profundas entre os quadrinhos e a literatura, principalmente com “Um Contrato com Deus”, de 1978, as graphic novels ainda eram vistas com certo alheamento pelo mundo acadêmico, além de o público literato torcer o nariz para elas.
O cenário mudou quando Robert Crumb, autor de “Genisis”, “Fritz, the cat” e “Blues”, começou a apresentar seus primeiros trabalhos que, assim como os de Eisner, apresentavam uma nível narrativo muito mais profundo e complexo que o normal. Pouco a pouco a “categoria” foi ganhando força e se estabelecendo, deixando de lado a imagem de pária do mundo literário.
Logo o terreno estava pronto para que, em 1982, Alan Moore e David Lloyd criassem um dos maiores mitos das HQs: “V de vingança”. A série, que deu origem ao filme homônimo e depois teve seu personagem ‘adotado’ como símbolo do grupo Anonymous, tem um paralelo com o clássico distópico “1984”, de George Orwell e a ascensão do Terceiro Reich, na década de 1930.
O frisson causado pela obra de Moore e Lloyd deu ao livro o status de cult e causou uma verdadeira caça à obra quando o longa-metragem, dirigido por James McTeigue, chegou aos cinemas em 2005. Fora de catálogo há anos no Brasil, a graphic novel voltou às lojas pela Panini.
A relevância do gênero (sim, as HQs já são um gênero literário) é tamanha que as editoras mais importantes do país já possuem um selo especial para esse tipo de publicação. A Companhia das Letras conta com o Quadrinhos na Cia – e tem no catálogo gente do peso de Ware, Art Spiegelman, Eisner e Marjane Satrapi -, a Globo Livros criou a Globo Livros Graphics – que anunciou o lançamento de “As Diabruras de Quick e Flupke” de Hergé -, além da L&PM e da Objetiva que estão lançado obras de seu catálogo em adaptações em mangá e graphic novels, respectivamente.
As HQs são o amadurecimento da linguagem, combinado a arte da escrita e também a do desenho. Por isso, antes de dizer se uma graphic novel é ou não literatura, o melhor a se fazer é LER.