Crítica: “O Mundo em chamas”, de Siri Hustvedt

Lutando contra a misoginia das artes plásticas, artista norte-americana cria três heterônimos masculinos de carne e osso e engana mercado. Em 140 caracteres, essa é a síntese de O Mundo em chamas (Companhia das Letras, 464 págs., R$ 59,90), o novo livro de Siri Hustvedt. Mas a obra vai além.

Harriet Burden, ou simplesmente Harry – o que já revela uma certa ambiguidade da protagonista -, estava cansada de ver seu trabalhado relegado a meras notas no jornal ou à sombra do seu finado marido, Felix Lord, galerista, crítico e colecionador. A tentativa de se reinventar recairia sobre uma difícil missão: nascer de novo. A percepção de que artistas masculinos, literalmente, roubavam a cena, deu a Harriet um importante insight: renascer homem.

Baseada em argumentos históricos e artísticos, ela convida três artistas obscuros para tomar suas obras e expô-las: o tímico Anton Tish, o atormentado Rune e o performático Phineas. Q. Eldridge. Todos abarcam uma parte da personalidade de Harry, que se desmancha aos poucos em sua obsessão pelo marido morto.

Crise

Harriet carrega, como seu próprio sobrenome indica, um grande fardo: a memória. Os filhos Ethan e Maise descobrem que a mãe, apesar de já ter um novo companheiro, vive sob a lembrança dos dias em que marido estava vivo, por isso, reconstrói o falecido em obras de arte que se transformam em totens bizarros de um desejo doentio.

Divulgação

Harriet é o arquétipo realista de Flaubert: volúvel de acordo com as necessidades. Assim como Emma Bovary, ela busca uma fuga do mundo monocórdio e sem sentido. O problema está o abismo do qual se aproxima quando se afasta do chão. E tal qual a congênere francesa, não existirá salvação.

A estratégia da aranha

A construção da história é engenhosa: Harriet já está morta e um livro está sendo escrito sobre ela. Para isso, o organizador coleta os cadernos perdidos de sua “biografada”, além de entrevistas de pessoas próximas ou falsamente cotodianas. A teia é delicada, mas bem enjambrada, recorrendo a uma bibliografia real e imaginária – no melhor estilo borgeano.

Hustvedt, que é esposa de Paul Auster, parece se valer os artísticos narrativos usados pelo marido para criar a tênue linha entre o concreto e o delírio. Harry embarca cada vez mais na ilusão, sem saber o lodaçal em que está se metendo. 

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