Bentinho só se deu conta da possível traição de sua esposa Capitu quando o filho Ezequiel cresceu e tomou formas de Escobar, amigo de infância do protagonista do romance de Machado de Assis. Ray Midge foi um pouco mais astuto e percebeu que a esposa Norma já não estava mais “na sua” quando deu por falta de seu Ford Torino. A partir dessa “perda” – o carro, não a mulher – começa romance O Cão do sul (Alfauara, 264 págs., R$ 34,90), de Charles Portis.

continua após a publicidade

A fuga de Norma com o ex-marido Guy Dupree, um típico canastrão americano, coloca Ray na pista do casal, que foge para uma cidade no México – deixando como pistas as faturas do cartão de crédito do marido traído -, é uma estaca no coração de uma sociedade conservadora (o livro foi publicado originalmente em 1979), tanto no que diz respeito à formação/fomatação da família quanto à relação entre branco & negros e norte-americanos & mexicanos.

O que Midge encontra pela frente enquanto tenta recuperar seu Torino é um balde de esteriótipos que ajudam a criar o cenário cômico para um série de desventuras. É chocante para os dias atuais, por exemplo, ver um negro ser chamado de macaco. Portis, ao menos o Portis da década de 1970, não se furta em seguir as regras do que chamamos de “politicamente correto”.

Humor

O caráter cômico do livro só faz sentido por se desmembrar e não se atrelar às convenções. Para secar a ferida é preciso desinfetá-la, um processo doloroso. Portis usa o preconceito como antídoto para discriminação. A visão clichê e estreita sobre que mora além da fronteira americana é escancarada em O Cão do sul e chegar a ser perturbadora.

Aos poucos se vê que o mergulho de Ray, uma espécie quixotesca moderna, na realidade é algo inesperado e o desejo de voltar à vida normal é tão presente acaba por movê-lo – muito mais que o carro ou a mulher.

continua após a publicidade