Falar em literatura tcheca – na maioria das vezes – resume-se a Kafka. Todos os outros autores se tornaram universais ou ligados a outros países. Milan Kundera não é exceção. Morando na França desde 1975, seu discurso é acentuadamente napoleônico. Quem ouvia Cortázar falar, após muitos anos residindo em Paris, também percebia em sua voz um sotaque francês misturado ao seu espanhol.
Kundera nunca se limitou geograficamente. A Imortalidade (Companhia das Letras, 408 págs., R$ 54,90), livro de 1990 publicado neste mês no Brasil, cria um cenário atemporal e “desterritorializado” das relações humanas. O casamento de Agnès e Paul era como um conto de fadas, não pelo perfeccionismo, mas pelos encontros e desencontros. Gestos e palavras se transformam em pequenas armas e, aos poucos, ambos vão cedendo à distância que se aproxima e os afasta.
Um simples movimento corporal transforma a vida de Agnès, que passa a imaginar ter dentro da sua mente um homem chamado Kundera, responsável por escrever o seu destino – além de biografar Goethe e sua relação tempestuosa com Bettina, uma aspirante a amante que vê seu intento naufragar. E, assim como a concubina do poeta, Agnès é uma nau à deriva, esperando o momento de aportar. O problema é que ele não vem.
Laura, irmã de Agnès, é uma mulher problemática e que tenta se matar, mas acaba impedida por Paul. Kundera apresenta Agnès como uma espécie de Emma Bovary – ou ainda uma Capitu -, mas que não trai o marido: deixa seu lugar acidentalmente, lugar que acaba ocupado por Laura.
Homo sentimentalis
Kundera é um narrador sofisticado: usa as vidas de Beethoven e Goethe para entrelaçar a existência pífia de Agnès, que só é agraciada com a imortalidade após efetivamente morrer. A perenidade da vida, sob os olhos do tcheco, é a lembrança e aquilo que se deixa como espólio físico, moral ou sentimental.
A vida moderna é pouco mais que a repetição daquilo que outros homens e mulheres viveram anteriormente. A busca esquartejada por Kundera, apesar dos trâmites sobrenaturais, é a mais humana possível e se resume no desejo de ser inesquecível – o adjetivo contemporâneo e mundano para “imortal”.