Crítica: “A Hora dos ruminantes”, de José J. Veiga

“O estranho, o ainda não visto, é invasor.” Sempre ponderado em relação ao termo “fantástico”, tantas vezes aplicado à sua obra, o escritor goiano José J. Veiga (1915 – 1999) jamais se deixou rotular, mas dizia que sua literatura não era fantástica ou mágica e sim, realista. Por isso, a ênfase na resposta à pergunta feita pelo jornalista Sergio Cohn, dois anos antes de o autor morrer.

A Hora dos ruminantes (Companhia das Letras, 152 págs., R$ 34,90), publicado em 1966, uma das poucas celebrações aos 100 anos de Veiga, foi um dos livros de cabeceira de um amigo célebre do escritor, Guimarães Rosa (1908 – 1967) e ganhou as graças dos mais diferentes leitores – desde o requintado e “chato” até o jovem que busca “diversão”. Se considerar que Veiga estreou na literatura aos 44 anos, a situação é ainda mais surpreendente.

Segundo livro de José J. Veiga, A Hora dos ruminantes é uma fábula moderna sobre uma cidade chamada Manarairema, uma espécie de Macondo tupiniquim, que passa por três pragas. A primeira é uma invasão de forasteiros que transformam a rotina e pacatez do povoado. Sem saber se devem acolher os visitantes ou combatê-los, os moradores se desesperam sobre a própria inércia e ingenuidade.

Quando a situação parece dominada, uma matilha chega a Manarairema. Os cães tomam as ruas e as pessoas da cidade se trancam em casa à espera que os animais vão embora. “Os cachorros baixaram de repente, apanhando todo mundo de surpresa”. A narrativa de Veiga é simples e direta, mas nem por isso menos alegórica. Por último, bois se empinham em árvores, rios, campos de futebol e até no altar da igreja.

Fantástica realidade

Veiga era um fetichista: adorava objetos, principalmente o seu cachimbo. Qualquer um que acendesse o pito com isqueiro recebia a excomunhão. “Não faça isso. Só use fósforos”, aconselhava. Essa mania por ‘coisas’ fazia dele um exímio narrador. Como o próprio autor revelou a Cohn, ele parava em frente a algo do seu interesse e ali ficava até escrutinar completamente aquilo.

Por ter os pés naquilo que chamamos de realidade, talvez, José J. Veiga se incomodasse tanto quando lhe chamavam de “fantástico” – os mais desavisados o comparavam a Borges (1899 – 1986).

Apesar da invasão de estrangeiros, cachorros e bois, A Hora dos ruminantes é um dos textos mais realistas de sua época: a alegoria perfeita para a tempestade pela qual o Brasil passava, o regime militar. Os personagens são gente nossa, pessoas do povo que vivem o cotidiano – muitas vezes sem acreditar no amanhã – ou, como diz Antonio Arnoni Prado no prefácio, baseados na “oralidade quase sertaneja”.

Para um homem que recusou a armadura da Academia Brasileira de Letras, nada mais justo que seus livros contassem a história do povo – para o próprio povo.

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