A morte de Julio Cortázar, em 1984, ano seminal orwelliano, criou uma espécie de fenda temporal na literatura argentina. Por mais que morasse em Paris desde 1951 e já estivesse com 69 anos, nossos hermanos desenvolveram algo muito próxima à orfandade – acentuada pela morte de outro ícone, Jorge Luiz Borges, dois anos mais tarde. O que sobrou para consolar essa miríade de filhos foram as centenas de contos e os poucos romances que escreveu.
Uma parte importante desse espólio narrativo acaba de ser lançada do Brasil e vai um pouco além do que tínhamos de Cortázar publicado por aqui: A Fascinação das palavras (Civiização Brasileira, 304 págs., R$ 55). O livro é um compêndio de entrevistas feitas pelo jornalista uruguaio Omar Prego Gadea com o autor de Bestiário (1951) durante os seus últimos anos de vida.
Por mais que Cortázar reclamasse de sua saúde – existe uma teoria de que poderia ter contraído AIDS durante uma transfusão de sangue -, as conversas – que foram grava deliberadamente para resultar em um “livro muito louco” – apresantam ao leitor um homem contido, mas combativo, capaz de se orgulhar do sangue portenho apesar das décadas longe do seu país. Ainda assim, não dá para fugir da noção de que aquelas são palavras-testamento e Gadea deixa claro que percebia isso no decorrer do tempo.
“Eu perguntei muitas vezes se Julio suspeitava que a morte o estava espreitando”, comentou o jornalista, que é o biógrafo de outro importante contista latino-americano: Juan Carlos Onetti.
Pop
Borges e Cortázar formam a dupla mais importante de escritores da Argentina, mas enquanto o autor de Ficções é considerado hermético e distanciado do povo (sendo adepto do peronismo), Julio logo foi abraçado pelo universo pop, incluindo o cinema. Parte dessa popularidade veio com O Jogo da amarelinha (1963) – o primeiro livro realmente interativo, já que o leitor é quem pode denominar o caminho que o discurso do narrador irá seguir. Existem, obviamente, três maneiras-padrão de ler a obra, mas Cortázar relembra. durante as conversas com Gadea, que muita gente era inventiva nos métodos que utilizava para ler: de dados a números sorteados.
A partir de então, a dimensão do autor e sua obra tomou novas proporções. A adaptação que Michelangelo Antonioni fez do conto “As Babas do diabo”, do livro Armas secretas (1959), se tornou um dos clássicos do cinema: Blow-up (1966). No ano seguinte foi a vez de Godard de transformar “Autroestrada do sul”, do livro Todos os fogos o fogo (1966) no cult Weekend.
Ainda que seu prestígio tivesse atingido “as mais nobres esferas da intelectualidade europeia”, Cortázar se releva uma pessoa comum, talvez, um pouco aturdida com os “novos tempos” que batiam à sua porta, mas simultaneamente consciente do seu poderio literário.