I
Quando foi assassinado, em novembro de 1942, o polonês Bruno Schulz deixou pronto um mural na casa de Felix Landau – oficial nazista responsável por sua “proteção” -, porém, Messias, livro em que trabalhava na época, permaneceu inacabado e perdido. Schulz, que inicialmente se descobriu artista plástico e gravurista, foi surpreendido (quando voltava para seu gueto com um saco de pão nas mãos) pelo disparo de Karl Günther, oficial hitlerista enciumado por Landau ter morto o seu protegido,.
No final das contas, o autor de Lojas de canela (Sklepy cynamonowe, 1934) foi usado como moeda de troca entre os desajustes de oficiais da Gestapo. O escritor Izydor Friedman, amigo e testemunha do expurgo, disse que Günther resolveu o imbróglio moral em uma pequena sentença: “você [Landau] matou meu judeu e eu matei o seu”. E tudo se resolveu com duas vidas a menos.
Schulz, que por anos permaneceu submerso sob o signo de Kafka, não sobreviveu para ver seu nome estampado em traduções pela Europa – e muito menos na América. Witold Gombrowicz escreveu em seus diários sobre o encanto de encontrar a obra do amigo em uma livraria na França. “Há muito sabia desta edição preparada com o suor do seu rosto; porém, estremeci ao vê-la”. A emoção na é para menos: a coletânea, “em sua maioria contos de Lojas de canela, só saiu em 1961, ou seja, quase duas décadas após sua morte.
A tempestuosa descoberta se misturava às lembranças dos tempos em que caminhavam juntos pela rua Sluzewska, na Polônia. Ainda que se permanecesse à sombra do amigo, Gombrowicz não deixa de homenagear Schulz e fazer dele um herói pessoal e nacional. Se tivesse vivido cinco anos a mais, Gombrowicz teria se deslumbrado com a presença de Bruno Schulz na coletânea Escritores da outra Europa, organizada por Philip Roth. e publicada erm solo norte-americano em 1974.
Claudia Roth Pierpont, biógrafa e pesquisadora da obra do autor de O Complexo de Portnoy (1969), contou que Roth ficou muito impressionado com o “imprevisível gênio judeu (…) cuja obra era quase desconhecida na época”. Ao lado de Tadeusz Borowski, Milan Kundera e Danilo Kiš, ele formava um mosaico do que de melhor havia sido produzido em países europeus fora dos eixos tradicionais de publicação e “exportação literária”. (Roth trouxe à tona Kundera, que não havia despontado fora da República Checa, e, claramente, fugiu do óbvio em suas escolhas.)
II
Admirar o trabalho de Bruno Schulz não é uma tarefa das mais difíceis. Sua prosa barroca, como bem definiu Czes?aw Mi?osz, é rica e exuberante – o que o destingue de Kafka, com um texto burocrático, tal qual o ambiente do judiciário (ao qual estava exposto). Assim como o congênere checo, o escritor polonês criava frases e situações que “beiravam a intraduzibilidade”.
Um dos momentos mais incríveis de “Sanatório sob o signo da clepsidra”, do livro homônimo (Sanatorium pod klepsydr?, 1937), acontece quando o protagonista – dentro de furacão cronológico – retorna à loja do pai, que, na realidade, está internado no sanatório, e sai do comércio dentro de um carro sanfonado e telescópico. A imagem é surreal, escapando ao cérebro humano racional, mas permanecendo ilesa dentro da cabeça de Schulz.
A cena – tão absurda quanto a infindável biblioteca hexagonal, de Borges, ou o homem engolido por um crocodilo e que passa a viver confortavelmente no animal, de Dostoiévski – é um remix do mito grego de Orfeu, que desce à terra dos mortos para resgatar Eurídice. Em “Sanatório”, Jozéf é quem precisa visitar o inferno para salvar o pai. Quem sabe, por esse ângulo, a situação se vislumbre menos disforme.
De certa forma, a prosa de Bruno Schulz era a representação do mundo desorientado do seu tempo – não que hoje esteja melhor. A sua produção de gravuras e desenhos também não é diferente. Ambas expressam a sensação de alheamento provocada, principalmente, pela caça dos nazistas aos judeus. Seu texto e suas figuras funcionam como testemunha daqueles anos bárbaros e terríveis.
Henryk Siewierski, professor e tradudor polonês radicado no Brasil – responsável pela edição tupiniquim da obra de seu congênere -, explica que o narrador schulziano, para explicar sua atual situação, inevitavelmente, precisa retomar – e retornar (ao) – o passado. Essa estratégia coloca na mesa o sentimentalismo e a emoção que emanam da prosa de Schulz.
Não é difícil imaginar o que há de biográfico e o que é puramente ficcional na narrativa schulziana. Para Siewierski, ela toca o “ponto nevrálgico” da literatura moderna, questionando o poder da representação e seus significados. Quando, em “Os Pássaros”, as aves acumuladas se tornam um verdadeiro empecílio para a convivência familiar é preciso fazer uma escolha. E quais opções cabem ao pai? A família ou os pássaros. Ele escolhe a segunda.
A coisa toda é resolvida por Adela, que entra no “reino das aves”, leva a mão à cabeça por conta do “fedor” e permite que os pássaros escapem ao abrir a janela do sótão. A solução, portanto, escapa do circuito comum e é uma terceira pessoa que interfere, criando um novo sistema rizomático e não linear.
Os pássaros – assim como no longa homônimo de Hitchcock (que nada tem a ver com o conto de Schulz) – são a representação mais próxima e cotidiana do catastrofismo que irrompeu sobre a gerçaão de escritor polonês, principalmente sobre os judeus. Não havia como fugir a esse cataclisma cotidiano: o apocalipse (definição cristã, eu sei) batia à porta de quem quer que fosse e espreitava aos mínimos movimentos. O máximo que poderia ser feito para fugir dele era a arte. Bruno Schulz a fez.
III
Apesar de todo o seu poderio narrativo e imagético, a presença de Bruno Schulz no Brasil sempre foi pequena. De acordo com os catálogo da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), no Rio de Janeirio, a primeira edição por aqui foi Sanatório, publicada em 1994 pela editora Imago. Dois anos depois, foi a vez de Lojas de canela, também pela Imago. Em 2012, a Cosac Naify editou Ficção completa, livro que reúne todo o trabalho em prosa conhecido de Schulz. Nos três casos tradução, prefácio e notas pertencem a Henryk Siewierski.
Ficção completa, que esgotou rapidamente a primeira tiragem, trazia ainda quatro contos inéditos no Brasil: “O Outono”, “República dos sonhos”, “O Cometa” e “A Pátria”, todos publicados em revistas literárias da Polônia e só foram editados em livro após a morte do autor.
Ainda que seja uma figura obscura para os brasileiros – tal qual seus personagens – Bruno Schulz é um dos autores mais importantes do século XX e um dos poucos a permitir estudar o assassinato de 6 milhões de pessoas por uma perspectiva inovadora e assustadora.