Brasília – Aparentemente, uma planta não tem como se defender quando sofre o ataque de um inseto. No entanto, uma picada ou ferroada numa folha aciona a produção de uma série de substâncias capazes de bloquear a ação das enzimas digestivas do inseto, que mais tarde pode até morrer de indigestão. Agora se vê que essas substâncias têm um efeito ainda mais abrangente.

Uma proteína de defesa da cana-de-açúcar (Saccharum officinalis ), identificada por pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), mostrou-se eficaz contra fungos que atacam a cana e outras plantas de valor econômico, de modo que, com o tempo, pode se tornar um produto natural contra pragas. A canacistatina, como é chamada, ganhou a perspectiva de aplicações diretas na saúde humana por inibir a ação de catepsinas, proteínas que participam do surgimento ou da evolução de doenças como osteoporose, artrite reumatóide e mal de Alzheimer.

A descoberta da canacistatina é resultado da análise da função de cerca de 50 mil genes seqüenciados ao longo do Programa Genoma Cana ou Sucest (Sugar Cane EST, em referência à técnica adotada, chamada de etiquetas expressas de seqüenciamento ou EST), encerrado no final de 2000. Em São Carlos, o geneticista Flávio Henrique da Silva e sua aluna de doutorado Andréa Soares da Costa, que integravam uma das 70 equipes de seqüenciamento e análise dos genes, chegaram à proteína comparando genes – de cana e de outras plantas – que participam de mecanismos de defesa contra fungos.

Inicialmente, Silva e Andréa testaram a proteína contra uma espécie inofensiva de fungo filamentoso, o Trichoderma reesei , empregado industrialmente por produzir enzimas utilizadas na fabricação de tecidos e papel. O T reesi foi escolhido por ter sido o organismo adotado nos testes de outra molécula desse gênero, descrita há dois anos: a orizacistatina I, encontrada no arroz (Oryza sativa). Desde o início a proteína da cana exibiu uma estrutura semelhante à do arroz, aplicada experimentalmente contra o besouro Hypera postica , que ataca a alfafa (Mendicago sativa) – era uma indicação de que as atividades também seriam semelhantes. De fato, a canacistatina funcionou contra o Trichoderma.

Em outubro, apenas um mês após os resultados serem publicados na Biochemical and Biophysical Research Communications, a equipe de São Carlos verificou que a proteína atua ainda contra os dois gêneros de fungos mais comuns em cana, o Fusarium e o Colletotrichum , encontrados também no café. Outros experimentos, realizados em conjunto com José Odair Pereira, da Fundação Universidade do Amazonas, evidenciaram o mesmo efeito contra fungos Colletotrichum que também atacam a pupunha (Bactris gasipaes), o guaraná e o caju, plantas típicas das regiões Norte e Nordeste.

Na pesquisa aplicada à saúde humana, a equipe da UFSCar e o grupo de Adriana Carmona, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), demonstraram que a canacistatina inibe a ação de Catepsinas lisossomais, que, além do seu papel fisiológico normal, integram os processos biológicos que originam problemas como osteoporose, câncer, distrofia muscular ou doenças do coração. “Essa descoberta pode ter uma enorme aplicação na medicina”, diz Pereira. Ainda há anos de trabalho pela frente, mas nasceu daí a possibilidade de empregar essa molécula no desenvolvimento de medicamentos.

A canacistatina recebeu esse nome por duas razões: é específica da cana e é uma cistatina, grupo de moléculas que bloqueiam a ação de enzimas chamadas cisteíno-proteases. Inibidores de proteases como a canacistatina e a orizacistatina são produzidos mais intensamente em células de folhas e raízes danificadas e integram os mecanismos de defesa das plantas contra o ataque de insetos ou vermes. Quando ingeridos pela lagarta Leptinotarsa decemlineata, por exemplo, os inibidores afetam as enzimas digestivas do inseto e alteram seu crescimento. Por essa razão, Silva acredita que a proteína da cana possa ser usada como um inseticida natural – seria um caminho em princípio mais viável e mais rápido do que desenvolver plantas transgênicas.

Silva ainda não encontrou os limites da ação da canacistatina que descobriu com seu grupo. “Não param de aparecer novas aplicações”, diz ele, cujo laboratório integra o Centro de Biotecnologia Molecular e Estrutural (CBME), no qual correm os estudos de caracterização da proteína. Depois de dominar o processo de purificação da proteína, obtida em laboratório em bactérias Escherichia coli a partir do gene da cana, Silva trabalha para ampliar a produção e, em conjunto com José Abrahão Neto, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, desenvolver formas mais estáveis da proteína, que resistam a variações de temperatura.

Em um dos trabalhos conjuntos com a UFSCar, uma equipe da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro testará a canacistatina na eliminação dos fungos mantidos no fundo dos formigueiros, que servem de alimento às formigas operárias (as rainhas se alimentam de geléia real). Silva não arrisca um palpite sobre os resultados desse estudo, que pode terminar este mês, mas é certo: as descobertas sobre a cana-de-açúcar não se limitam mais a mudar e a explicar a vida apenas dessa planta. (Pesquisa Fapesp)

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