Assim como esta é uma das maiores curiosidades das pessoas, uma das queixas mais freqüentes no consultório neurológico é “Estou com um problema de memória”. Na verdade, o assunto é mais complexo. Diferente de mexer um lado do corpo, enxergar um lado do campo visual, entender a palavra falada ou engolir, memória não é uma função isolada de uma área cerebral. E muito do que as pessoas acham que é um problema de memória, como os “esquecimentos” que a maioria das pessoas tem, não são problemas de memória. A complexidade do assunto pode ser medida pelo fato de que praticamente não existem ambulatórios, departamentos, congressos, cursos, especialidades médicas ou psicológicas, especificamente sobre memória. Não existe a ciência da “Memoriologia”.
Existem pelo menos 2 tipos de memória completamente diferentes. Existe a memória universal e definitiva que o ser humano tem. Nós já nascemos com nosso DNA programado para aprender a andar e falar, por exemplo, da mesma maneira que não nascemos programados para bater asas e voar. Durante a vida acumulamos conhecimentos, muitos dos quais ficam incorporados, como andar de bicicleta, dirigir automóvel com marcha e com câmbio automático, em países com mão direita ou mão inversa, fazer a barba, depilar as pernas. Mesmo que um inglês more no Brasil 10 anos, ao voltar para seu país ele terá grande facilidade em dirigir do lado contrário ao nosso, porque isso já ficou gravado em sua
memória. Existe memória para jogar tênis, nadar estilos específicos, jogar bilhar ou tênis de mesa. Um nadador volta a nadar e todos seus colegas percebem que ele nada como 15 anos antes, tem as mesmas habilidades e dificuldades que tinha, embora possa estar fora de forma e mais velho.
A memória universal não tem uma sede; seus componentes visuais, sensitivos, motores, espaciais, verbais, emocionais, ficam registrados em áreas diferentes do cérebro. Provavelmente são os hipocampos, dois órgãos em forma de cavalo marinho, repletos de neurônios, localizados na profundidade da substância branca, nos lobos temporais, que acionam as
diferentes áreas corticais onde estão armazenadas as informações de cada modalidade. Os hipocampos colocam em ação, conforme necessário, áreas visuais nos lobos occipitais, verbais no hemisfério esquerdo, sensitivas nos lobos parietais, e assim por diante.
Outra forma de memória radicalmente diferente é aquela que usamos de forma imediata, por exemplo, a que não nos deixa sair do banheiro sem nos limparmos, ou do quarto de vestir sem a calça. É como a memória RAM de um computador, que permite que ele abra dois programas ao mesmo tempo, e que só funciona quando está ligado. No caso dos seres humanos, é a memória que permite sair de casa para ir na banquinha da esquina e realmente compremos o que tínhamos planejado. Esta memória imediata, a primeira afetada em doença de Alzheimer, não é consciente. A pessoa nem sabe que está usando
a memória nestas atividades corriqueiras. O automatismo destas funções sugere que a maior parte delas esteja já gravada nos hipocampos e nas regiões corticais dos lobos temporais.
O ato de trazer uma informação como o nome de uma pessoa que você encontra num casamento, não depende somente da memória. Talvez mais importantes nesta forma de memória sejam o estado de humor e grau de vigília da pessoa, se ela está mais ou menos alerta, depressiva ou ansiosa, que definem a qualidade de acesso daquela pessoa aos seus registros. Na prática, a imensa maioria das pessoas que se queixam de esquecimento tem ansiedade ou estão deprimidas, ou mal gerenciadas, sob stress em casa ou no trabalho. Déficits conscientes com freqüência não são um problema de memória, e sim um distúrbio do comportamento. Portanto, não dependem de uma localização no cérebro, e não vão aparecer em exames como tomografias ou ressonâncias.
Em resumo, a memória fica em todo o sistema nervoso. Cada comunicação entre dois neurônios, a chamada sinapse, vem programada geneticamente, e tem capacidade de aprender. Todos neurônios têm memória. Os vários sistemas que ajudam na comunicação e na organização dos neurônios, como os maestros de orquestras, também tem memória universal, em grande parte genética, gravada no DNA, e tem capacidade de armazenar conhecimento durante a vida. O sistema operacional da memória, o Windows que resolve qual sistema colocar em ação em qual situação, utilizado no dia a dia, que governa o acesso à memória de mais longo prazo, fica nos hipocampos, dentro dos lobos temporais. Se tivermos que escolher um local mais vital para os processos relacionados com a memória, seriam os dois lobos temporais, e em especial, os hipocampos.
Paulo Rogério M. de Bittencourt
é médico em Curitiba ( www.unineuro.com.br )