Quando se fala em modernidades, a primeira impressão é de que se trata de grandes e requintados inventos. Contudo, elas estão presentes nos fatos mais corriqueiros, particularmente nos excessos burocráticos, dos quais a Medicina não está imune.

Juntamente com a tradicional publicação “Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal”, da Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro, Edição Janeiro, Fevereiro e Março de 2003, chegou-me às mãos o boletim de “Notícias Psiquátricas”.

Referido boletim contém importante depoimento do dr. Nikodem Edler, sob o título “Quem Protege Nossas Vidas?”

Em rápidas considerações, compara o recente desastre ocorrido com a nave espacial “Colúmbia”, apesar de toda a tecnologia e da eficiência científica, com as oportunidades de erros a que são constantemente expostos incontáveis procedimentos humanos. Cita como exemplo a velha aeronave presidencial do nosso País, até apelidada de “Sucatão”, sem qualquer acidente, o que se atribui ao fato de “Deus ser brasileiro”. Em seguida, comenta a inconsistência das propaladas proteções e garantias nas UTIs (Unidades de Terapia Intensiva), e passa ao seu testemunho pessoal sobre o procedimento cirúrgico a que foi submetido recentemente: artroscopia do joelho, para retirada do menisco.

Inicialmente bem impressionado, face os cuidados aparentes e a simpatia do pessoal auxiliar, como o de duas enfermeiras que anotaram cuidadosamente as informações, inclusive os antecedentes relativos à diabete e respectiva medicação.

Quando chegou a jovem médica anestesiologista, também muito simpática, “percebo que já não tenho mais” “senhor”, nem “doutor”. A médica dirigiu-se ao médico paciente da seguinte maneira: “Seu Nikodem, ih que nome engraçado, é grego? Está muito bem conservado…”. E continua o dr. Nikodem: “Sinto-me como um peixe conservado em salmoura, e percebo que já não sou mais…” “senhor” e muito menos “doutor”.

Após a cirurgia e já de volta ao apartamento, uma enfermeira procede à dosagem da glicemia. Logo em seguida fui surpreendido com a pretendida aplicação de insulina. Recusei, porque minha glicemia sempre esteve sob controle; a dosagem feita antes da cirurgia era de 138mg e eu estava em jejum há horas. A enfermeira retirou-se e voltou em seguida acompanhada da médica de plantão, que havia receitado a insulina, alegando que a minha glicemia estava em 395mg. Indignado, observei que havia um frasco de soro glicosado gotejando em minha veia. Portanto, a hiperglicemia era da glicose aplicada. Traduzindo: “Ninguém leu o que o outro havia escrito. Ninguém se interessou em saber sobre diabete e a correspondente medicação. Cada um cumpriu o seu dever de preencher a papeleta, o paciente que se danasse. E aí volto a pergunta: Quem protege as nossas vidas?”.

É raro o dia em que os meios de comunicação não comentam a falta de UTIs nos hospitais, ou a falta de leitos nas já existentes.

O advento das UTIs é relativamente recente (meados do século XX). Patologias que hoje são tratadas nas UTIs eram atendidas em leitos comuns, nos hospitais e até mesmo na residência do doente.

Uma das mais graves patologias clínicas é o edema agudo de pulmão, na verdade uma insuficiência cardíaca aguda. Se o doente não for atendido em tempo hábil e eficazmente, morre!

No momento presente, um doente com edema agudo no pulmão é tratado com eficácia no âmbito de uma UTI. Mas, em passado não muito distante, quando o médico clínico não restringia a assistência aos doentes em ambulatório, consultório e nos hospitais, era relativamente freqüente o atendimento de casos graves, como o edema agudo de pulmão, na residência do doente. Tais procedimentos exigiam muito maior esforço do médico. Além dos deslocamentos às residências dos doentes, determinadas patologias condicionavam a sua permanência junto aos pacientes horas seguidas. Ao profissional médico era necessário compensar, quanto possível, o então monitoramento do paciente, como acontece nas UTIs, executando procedimentos normalmente atribuídos ao pessoal da enfermagem; improvisar meios indispensáveis à superação das manifestações da doença. Por exemplo, a utilização de cadarços ou assemelhados (gravatas), na ausência de garrotes, para aplicar nas raízes dos membros superiores e inferiores do paciente, e assim reduzir o fluxo de sangue aos pulmões, em caso de edema agudo de pulmão.

Os médicos mais antigos sabem por experiência o valor dos esforços dispendidos, capaz de salvar vidas, cujo êxito é significativamente gratificante.

Nas UTIs, além do monitoramento do paciente e o emprego de excelentes recursos instrumentais e medicamentosos, o mais importante é a presença de equipes especializadas e devidamente treinadas, penhor seguro de sucesso na quase totalidade das patologias.

Eis por que não se pode desdenhar os recursos propiciados pela ciência e pela tecnologia. Ter presente sempre que, quando não se lança mão dos recursos disponíveis, paga-se tributo pelo descuido. Quando, porém, não se dispõe desses recursos, é necessário suprir a sua falta com criatividade, utilizando meios improvisados, enriquecidos pela dedicação, pela competência e pelo calor humano. A presença assídua do médico, sua competência e dedicação, transmite ao doente o sentido de amparo, de segurança e de confiança, fatores essenciais à sua recuperação.

Ary de Christan é da Academia Paranaense de Medicina.

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