Os pesquisadores que desenvolveram a fosfoetalonamina sintética, usada para o tratamento do câncer, contrataram uma empresa para obter o registro do produto na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A contratada, RAGB Regulatory Affars Global Business, informou que já discute uma parceria com um laboratório do Rio Grande do Sul para a realização dos testes necessários. Em seu site, a RAGB informa dispor de uma equipe especializada em assessoria no registro de produtos junto à Anvisa.
A substância foi desenvolvida há mais de 20 anos por pesquisadores do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Carlos e vem sendo usada como tratamento experimental contra o câncer. Relatos de supostas curas fizeram crescer a procura pela substância, que não tem registro na Anvisa.
De acordo com a empresa, houve manifestação de interesse do Laboratório Farmacêutico do Rio Grande do Sul (Lafergs), vinculado à Fundação de Produção e Pesquisa em Saúde, em dar seguimento às pesquisas já realizadas na USP pelo ex-professor Gilberto Orivaldo Chierice. Uma reunião entre as partes está agendada para esta semana, em Porto Alegre, mas a empresa ressalva que as tratativas estão em fase inicial. O laboratório foi procurado, mas o expediente já havia se encerrado.
Autuação
Em uma fiscalização realizada no último dia 28, o Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP) autuou o laboratório que produz a substância fosfoetanolamina sintética, instalado no Instituto de Química da USP em São Carlos. De acordo com o conselho, a fiscalização constatou que a produção não segue as normas para sintetização de fármacos e não conta com farmacêutico responsável.
Ainda segundo o CRF-SP, para ser considerado medicamento possível de utilização de forma segura no país, a fosfoetanolamina teria de ser registrada segundo as normas sanitárias do governo federal. “Não há segurança no uso dessa substância. Um paciente em estado terminal pode sentir melhorias, mas ninguém sabe os efeitos da fosfoetalonamina a médio e longo prazos”, afirmou o presidente do CRF-SP, Pedro Eduardo Menegasso.
Segundo ele, diante do clamor público, o governo poderia liderar um esforço concentrado para realizar as pesquisas mínimas de segurança e liberar com isso a utilização da substância em casos específico. “Da forma como está, a população está exposta a riscos”, declarou em nota distribuída pela assessoria de imprensa.
De acordo com o CRF, a USP pode ser multada se não adotar boas práticas de produção, controle de qualidade e designar farmacêutico para ser o responsável técnico pelo substância.
Por se tratar de órgão de pesquisa que produz a substância em pequena quantidade e distribui gratuitamente, o valor da multa, ainda a ser calculado, será simbólico. A Vigilância Sanitária, órgão a quem compete uma possível interdição do laboratório, foi notificada, mas ainda não se pronunciou. Embora a produção seja autorizada pela Justiça, o CRF entendeu que estaria deixando de cumprir obrigação legal se não fizesse a fiscalização no Instituto de Química. Segundo o conselho, isso não ocorreu antes porque até decisão recente da Justiça, a substância não era usada como medicação.
No mês passado, revendo decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Supremo Tribunal Federal liberou a entrega das cápsulas a uma paciente terminal por entender que o uso da substância era o último recurso e que apenas a falta de registro na Anvisa não caracteriza lesão à ordem pública. O TJ, em seguid,a, liberou para os demais pacientes com liminar da Justiça. A produção é feita exclusivamente para atender a essas liminares.
Procurado, o Instituto de Química de São Carlos não se manifestou sobre a autuação. A USP informou que sua posição é a mesma do comunicado emitido em outubro, no qual afirma que é obrigada a fornecer o produto para os que solicitam através de liminares judiciais. A USP esclarece que a substância não é remédio, foi estudada como produto químico e não existe demonstração cabal de que tenha ação efetiva contra a doença.
No comunicado, a USP afirma ainda que não é uma indústria química ou farmacêutica, não tem condições de produzir a substância em larga escala e que, por ser produção artesanal, não atende aos requisitos nacionais e internacionais para a fabricação de medicamentos. Segundo o comunicado, a fosfoetalonamina está disponível no mercado e pode se adquirida pelas autoridades públicas. “Não há, pois, nenhuma justificativa para obrigar a USP a produzi-la sem garantia de qualidade.”
Não uso
Em documento divulgado nesta terça-feira (3) a Academia Brasileira de Ciências (ABC) alertou para os riscos do consumo da fosfoetalonamina sintética como um método para o tratamento do câncer e recomendou que o produto não seja usado em seres humanos. O texto, assinado pelos diretores João Batista Calixto e Mauro Martins Teixeira, explica que o processo de aprovação de um medicamento, controlado no Brasil pela Anvisa, pode durar até 12 anos, pois deve passar por diversas etapas de testes em laboratório e em organismos vivos.
A fosfoetalonamina não passou por todas essas etapas que, segundo a ABC, são indispensáveis para que a molécula se torne um medicamento com provas científicas de eficácia e segurança. Além disso, o manifesto explica que não existe um tipo único de câncer e que, para cada caso particular da doença, há a necessidade de demonstração da eficácia clínica do medicamento e de compará-lo com outras terapias já existentes. “Conclui-se, portanto, tratar de uma molécula em fase ainda muito preliminar de desenvolvimento e que ainda está muito distante de poder ser recomendada para uso como medicamento em seres humanos.”
A entidade recomenda que a fosfoetanolamina não seja utilizada em seres humanos até que estudos científicos pré-clínicos e clínicos sejam conduzidos para avaliar sua segurança e eficácia, como é exigido por todas as agências reguladoras internacionais, incluindo a Anvisa.
O médico cancerologista Renato Meneguelo, um dos detentores da patente do produto, disse que as cápsulas são de um composto resultante da sintetização da fosfoetalonamina e diferente do produto original. Ele espera que os testes confirmem as propriedades da substância contra alguns tipos de câncer. Sobre a ação do CRF, reconheceu que o Instituto de Química da USP não é o local mais adequado para fazer o produto final.