Dentro de alguns dias, estaremos indo às urnas para dizer se queremos ou não que entre em vigor a lei que dispõe sobre o registro, a posse e a comercialização de armas de fogo. Se vencer o sim, a lei entra em vigor e restringe-se a compra de armas aos cidadãos comuns, entre várias outras implicações. Se vencer o não, a lei não entra em vigor e a situação fica como está.
Independente do mérito da discussão, dos diferentes pontos de vista de quem vai aprovar ou rejeitar o referendo popular, do resultado dessa consulta pública inédita na história do Brasil e da importância de estimularmos o desenvolvimento de cidadãos pacíficos, sobressai um aspecto que transcende o debate: a responsabilidade não só quanto ao uso de armas – por profissionais que precisam delas para o desempenho de suas atividades ou por civis treinados e com licença para portá-las ? mas também no que diz respeito à sua guarda.
Segundo informações do Ministério da Saúde, em 2003 nada menos que 52% das crianças e dos adolescentes de 0 a 14 anos que deram entrada em hospitais de todo o país foram vítimas de disparos acidentais de armas de fogo. Isso significa que, antes de sofrerem a lesão física, elas foram vítimas indiretas da violência que as armas deveriam somente prevenir e alvos diretos de quem ? seja trabalhador em atividade ligada à segurança pública ou privada, cidadão comum autorizado ou possuidor ilegal ? foi negligente com a guarda da sua arma. O modo como essas armas ? que se pretendem instrumentos de defesa ? foram depositadas em algum lugar, foi ineficaz para manter à distância quem não tem noção dos riscos de lidar com elas e, então, sobrevieram inúmeras tragédias.
O dado que enfocamos não considera o público de 0 a 14 anos que foi vítima (fatal ou não) de disparos criminosos, da violência propriamente dita, que não poupa sequer nossas crianças e jovens e povoa o noticiário diariamente. Também não abrange os jovens até 19 anos, que estão no final da faixa etária cuja saúde e bem-estar cabem a nós, pediatras, cuidar. Ainda assim, não se torna menos chocante.
O motivo da nossa preocupação é que esse tipo de ocorrência acidental, produto da falta de cuidado, pode continuar acontecendo independente do resultado do referendo. Isso porque, independente de os cidadãos comuns passarem a ser impedidos de adquirir e portar armas de fogo, elas continuarão fazendo parte do universo enorme de pessoas que, por questões profissionais ou circunstanciais, continuarão autorizadas a tê-las junto de si por lei. E essas armas, se forem mal guardadas, poderão dar causa a novas tragédias.
Eliane Mara Cesário Pereira Maluf, presidente da Sociedade Paranaense de Pediatria.