Vento define aventura na Terra do Fogo


Um arco-íris permanente sobre a água define um cenário quase surreal. Às margens do Lago Fagnano, no pedaço final do Chile, estão bichos, gente, estâncias e histórias que mais parecem tiradas dos livros antigos. De início, é preciso esfregar os olhos, como quem não acredita no que vê. Tudo que há por ali é, literalmente, milenar e paralelo. Da vegetação rasteira às pedras que rolaram montanha abaixo com o degelo glacial.

A paisagem de cinema é o melhor presente para quem chega até o lugar. Três escalas de avião até Punta Arenas, algumas horas de barco para cruzar o Estreito de Magalhães e quase um dia inteiro de carro entre descampados, nevascas, vento forte e muito frio levam à Terra do Fogo chilena. A região é uma das mais inóspitas da América do Sul e uma das mais belas do planeta.

Ainda em Punta Arenas – último ponto antes de atravessar o estreito histórico – temperaturas rigorosas e ventos furiosos avisam que o visitante está prestes a colocar os pés em terra de extremos. E de exploradores de coragem. Até bem pouco tempo, apenas aventureiros voluntários rabiscavam sobre os mapas do lado chileno da ilha. E quase sempre de veículos quatro por quatro, equipados com barracas térmicas, combustível e muita comida para as noites geladas.

Foto: Jaime Bórquez
Arco-íris permanente e o Lago Fagnano: composição de um
cenário para ficar na memória.

Aos poucos, a demanda de desbravadores que chegava à região deu origem a iniciativas locais de apoio ao turismo. Com alguma organização e a alma desprendida de confortos, já é possível visitar este pedaço do mundo com a companhia de guias nativos e um mínimo de estrutura planejada. Mas não sem antes preparar o corpo e a alma para tudo o que está por vir.

Por aqui, não tem escapatória. Você pode até traçar um esboço de roteiro, mas será o vento – e somente ele – quem definirá os caminhos da aventura. Nevascas inesperadas, frios abaixo de zero e até a ausência de energia elétrica fazem parte do contexto local e incrementam o grau de relação com uma natureza que faz questão de mostrar o quanto é forte por estes paralelos. Pronto para partir?

Muitos atrativos desde a capital Punta Arenas à graciosa Porvenir

Foto: Jaime Bórquez
Clima interiorano de Porvenir, de 6,5 mil habitantes, conquista o turista.

O ponto de partida para a ilha grande da Terra do Fogo é Punta Arenas, cidadezinha situada a três mil quilômetros ao sul de Santiago e capital da Patagônia chilena. É bem aqui que desembarcam quase todos os turistas rumo às mais diversas regiões e parques nacionais da Patagônia sul. Uma boa estrutura de hotéis e restaurantes, além de uma bem servida zona franca, costumam merecer pelo menos dois dias de estada na cidade.

Aqui, é bom abastecer as malas de calças, botas e luvas impermeáveis, sem esquecer do protetor solar de alto fator e do gel higiênico. O próximo passo é atravessar o canal que navegadores tanto perseguiram há séculos. Uma barcaça faz a travessia de veículos e pessoas pelo Estreito de Magalhães, de mar revolto e horizonte infinito.

O canal descoberto pelo português Fernando de Magalhães, em 1520, foi durante muitos anos a única passagem que ligava os Oceanos Pacífico e Atlântico na América do Sul. Até a abertura do Canal do Panamá, na América Central, os caminhos de Magalhães foram seguidos por navegadores do mundo todo. Do outro lado da margem, placas diversas saúdam a chegada oficial à Terra do Fogo.

Uma hora e meia de carro leva a Porvenir, maior cidade da ilha no lado chileno. O vento intenso e permanente – fruto da localização austral no mapa – molda a vegetação local e define a rotina da região nas quatro estações do ano. No verão, a noite curta e as temperaturas nem tão rigorosas permitem atividades mais longas ao ar livre. No inverno, quando o sol costuma se pôr no meio da tarde e faz despencar as escalas dos termômetros, é tempo de esperar.

Como quase todas as cidades do extremo sul do Chile, Porvenir tem ares de interior. Seus 6,5 mil habitantes costumam ser simpáticos e excelentes anfitriões. Telhados coloridos, hospedarias simples e restaurantes que servem centollas – espécie de caranguejos gigantes preparados como iguaria – costumam cativar pelo inusitado. Para o visitante-pesquisador, o Museu Fernando Cordero Rusque é ponto de parada obrigatório.

Ali, é possível ver a fauna local empalhada e a rica história da extração do ouro na região. Máscaras, objetos e algumas fotos mostram um pouco do que foram os primeiros povos que habitaram a Terra do Fogo. As cinco principais etnias -Selk?nam, Haush, Yámanas, Aónikenk e Kawéskar – foram dizimadas com a chegada dos europeus no século 19. (LZ)

Experimente um pouco da vida campeira

Foto: Luciana Zonta
Estâncias de criação de
ovelhas viram hospedarias.

A abertura da estrada ao interior da Terra do Fogo e algumas iniciativas locais está dando origem à descoberta do turismo na região. Há também passeios de barco, organizados por algumas agências locais, que circundam glaciares milenares. Há quem venha até aqui só para conhecer a rica flora de espécies nativas, como liquens, bosques de lengas e turfas multicoloridas que conferem um ar único à Terra do Fogo.

Alguns criadores de ovelhas e descendentes dos exploradores de ouro na região estão transformando suas estâncias em aconchegantes hospedarias para o turista que procura contato com o modo de vida local. Nestes lugares, o grande barato é acompanhar as atividades campeiras e procurar um rio cheio de trutas para pescá-las. E o que hoje só é conhecido de alguns europeus começa a despertar também a atenção dos desbravadores brasileiros.

Informações sobre pacotes e destinos turísticos na Terra do Fogo, acesse www.patagonia-chile.com, www.sernatur.cl e www.expedition.com.br ou consulte seu agente de viagens. (LZ)

Fazenda é um dos redutos de preservação

Fotos: Luciana Zonta
No caminho, o branco absoluto das cordilheiras nevadas.

Rumo ao sul de Porvenir, um dia inteiro de viagem nos separa de um lugar paralelo. As dificuldades do caminho -ainda em construção pelo governo – explica o resultado. Entre o outono e o início da primavera, é comum o visitante enfrentar tempestades de neves nas duas cordilheiras que é preciso atravessar. Ou seja, veículo com tração nas quatro rodas é equipamento básico por aqui.

Para quem curte natureza no meio do nada, o trajeto é perfeito. Lagos azuis, montanhas nevadas, florestas e campos abertos se alternam em centenas de quilômetros de distância. O destino é uma propriedade rural às margens do Lago Fagnano, quase na fronteira com a Argentina, a poucos metros de Ushuaia, considerado o ponto mais austral do planeta. Isolado no meio das montanhas geladas, o casal German Genskowski e Maricela Diaz foi um dos primeiros empreendedores do turismo na Terra do Fogo chilena.

Acima, turistas caminham pela
área rural; abaixo, a casa de German e Maricela oferece aconchego a visitantes.

Durante o verão, eles costumam receber grupos de quase todos os países do mundo que vão ao sul do Chile em busca de contato com a natureza preservada. Desde que German pisou pela primeira vez na região, quando seu pai ainda trabalhava na mineração de ouro há 40 anos, ele nunca mais pensou em outro lugar para morar para sempre.

Depois de criar as duas filhas em Punta Arenas, German deixou a casa e o emprego estável para criar ovelhas às margens do Fagnano. Para garantir a paz local, ele fez questão de pedir ao governo que passasse a estrada em construção a pelo menos 700 metros de sua casa. A exigência era de que esta não poderia ser vista por quem circulasse por ali. ?Aqui me sinto feliz, no meio de toda esta solidão?, diz German.

Mas solidão mesmo o casal só experimenta no inverno. A propriedade ficou famosa principalmente entre os franceses ávidos por pesca amadora, já que as águas geladas da região são excelentes criadouros de trutas e salmão. Um dos charmes da propriedade é a ausência de energia elétrica. No final de um dia de pescaria ou cavalgada, nada melhor do se esquentar aos pés de uma lareira, enquanto Maricela prepara o jantar em fogão a lenha.

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