Rumo ao fim do mundo sobre duas rodas

Localizada no extremo sul da América está a região da Patagônia, alvo do meu roteiro que tinha como destino a cidade de Ushuaia, na tão falada Terra do Fogo. Ruta 40 Argentina, estrada temida por viajantes que se dirigem para o sul, pois não é pavimentada e conhecida pelo famoso ripio (estrada de cascalho muito solto) que percorre de norte a sul esse país, paralelamente à cordilheira andina.

Naquela noite decidi parar para pernoitar em um lugar chamado Bajo Caracoles. Engano chamar aquele lugar sequer de vila, são apenas algumas casas que circundam um dito ?hotel? servindo como única opção de hospedagem, comida e abastecimento para a moto por mais de 450 quilômetros de distância da próxima cidade.

Essa região açoitada pelo vento sempre vivo e violento, criando tornados de poeira, fazendo com que árvores fiquem sempre na horizontal, batia nas janelas do quarto tornando a noite desconfortável e gelada, já anunciando o desafio do próximo dia de 450 quilômetros de ripio até El Calafate.

Conversando com outros viajantes naquela noite, soube que muitas pessoas enfrentaram sérios problemas com o vento nos dias anteriores e que tiveram seus veículos tirados da estrada por lufadas de vento lateral mais fortes (160 quilômetros por hora). Verdade, pois constatei no caminho do dia seguinte, quando encontrei dois alemães tentando reconstituir uma moto DR 800 que havia capotado várias vezes e que, por sorte, seu condutor nada sofrera. E também um Land Rover estava abandonado ainda deitado de lado na beira da estrada.

Também havia notícias que moradores de Punta Arenas, no Chile, estavam bastante assustados com o forte vento para essa época, justamente no meu roteiro! Bem, as notícias não eram animadoras, mas eu mantinha forte convicção em cumprir o roteiro dentro do tempo previsto e chegar a Ushuaia na data estipulada.

Olhei pela janela e minha companheira, a XT 600 Yamaha, estava lá fora, segura, apenas coberta por uma fina camada de areia trazida pelo forte vento da madrugada. Baixando o olhar para os pneus… Surpresa! O pneu dianteiro furado! Droga, pensei, noite gelada, café ruim, o vento que não dá trégua e agora aquele pneu que já havia furado três vezes durante a viagem. Bem, pelo menos era só um pneu furado…

Quando se trata desta combinação: ripio + vento + 450 quilômetros em um só dia, o resultado pode não ser muito satisfatório para piloto e máquina, com o agravante de não ter nenhum tipo de assistência nesse percurso, você está completamente só. Pilotar contra as leis da física, atirando a moto contra o vento, mantendo o rumo sempre dentro do trilho deixado pelos carros, exige preparo físico e persistência para não desistir. É preciso contar com a sorte e boa dose de competência aliada a experiência para não sofrer quedas. A Patagônia não perdoa os erros, que podem ter custos muito altos.

Vento contra

A característica principal e marcante da região é que o vento sempre sopra de oeste para leste, fazendo com que, quem se dirige para o sul tenha sempre vento contra e lateral ininterruptamente. Feitos os devidos reparos, gasolina reserva, pedi licença para a tal areia acumulada no banco da moto, apontei para o sul, acelerei e não olhei mais para trás, firmei o pensamento em meu objetivo daquele dia e evitei olhar para o velocímetro, pois sabia que seria uma tortura contar os quilômetros que faltariam para chegar a El Calafate.

A poucos quilômetros dali o vento veio muito forte certificar se minha vontade era grande para prosseguir, fazendo com que a moto fosse de um lado para outro da estrada, mas não parei, dei alguns berros dentro do capacete e continuei firme em frente, controlando a moto naquela odisséia.

A estrada fazia sua parte oferecendo muitas pedras soltas, pontiagudas, que não me importava em desviar, para não deixar o trilho e correr o risco de entrar na parte mais fofa do ripio. Vez ou outra uma grande reta se abria, como que uma afronta ao meu lento progresso. Assim foi o dia inteiro de luta sem descanso, nem uma só sombra para  proteger, apenas uma planície árida, deserta e desoladora.

Mas apesar de todos os riscos que corria, estava certo de que me encontrava no lugar onde desejava estar naquele dia, estava só diante daquela que parecia ser uma paisagem infinita a ser descoberta, deserta e rude, escondendo seus encantos talvez na próxima curva.

Sensações e impressões

É difícil descrever as sensações e impressões que sentia no decorrer daquele trecho tão inóspito. Uma mescla de liberdade e segurança passaram a tomar conta, confiança que venceria sem deixar de absorver todas as belas paisagens formadas pela combinação das forças da natureza.

Já tinha percorrido até então desde Curitiba perto de 4,5 mil quilômetros, passando pelo norte da Argentina, ingressando no Chile pelo Passo Libertadores indo a Santiago, tomando a pan-americana até Puerto Montt, entrando na Carretera Austral chilena, uma das mais lindas estradas do mundo, em meio a cordilheira com um visual incrível e com muitas cachoeiras, rios de degelo, lagos de cor turquesa, vulcões imponentes coroados com neve eterna.

Passei por pequenas cidades aconchegantes, encontrando aventureiros de várias partes do mundo, como alemães, norte-americanos, canadenses, franceses, belgas, australianos, brasileiros, ingleses, nos mais diversos meios de locomoção, mochileiros, ciclistas, motociclistas, caminhonetes. Mas aqui na Ruta 40 Argentina parece ser o lugar evitado por todos, apenas alguns desavisados ciclistas e motociclistas que encontrei carregando as marcas da aventura mal planejada, cujo rosto denunciava o cansaço e, certamente, se perguntavam o que estariam fazendo ali e não no conforto de suas casas perto de seus familiares tão distantes.

Boas-vindas

Enfim continuei em frente, já havia percorrido 3/4 do percurso daquele dia e começava a avistar ao longe novamente a cordilheira com seus picos de granito gelados tentando perfurar o manto azul e laranja que os cobria, anunciando a chegada do anoitecer, e quando avistei o Monte Fitz Roy sabia que minha jornada estava chegando ao fim (cerca de cinquenta quilômetros de El Calafate), fiquei feliz em ver a placa indicando a cidade e um presente estava se formando no horizonte com um lindo pôr-de-sol em nuvens avermelhadas dando um show de tons laranja e rosa, um dos mais belos que já vi.

Hoje de volta a minha cidade, Curitiba, misturado em meio a multidão sou apenas mais um, mas meu espírito ainda viaja por aqueles lugares que jamais esquecerei, ainda posso sentir a força do vento em meu rosto, sorrir sabendo que consegui mais uma vez fazer parte daquela que é chamada de ?A última terra?.

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