Expedição pelo sertão de Guimarães Rosa

A primeira imagem que vem à memória quando se fala em sertão é a de um lugar ermo, praticamente sem vida, seco, lá pras bandas do nordeste. Quem leu Guimarães Rosa sabe que não é bem assim.

“É onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta… O sertão está em toda a parte”, descreve o escritor.

Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa leva o leitor a uma viagem por um pedaço do Brasil pouco conhecido, mas que, de tão real, aguça a curiosidade. Os cenários descritos estão lá e seus personagens parecem personificados na caricatura do sertanejo que vive no sertão mineiro.

No Rio Pardo, ponte não para em pé: só esta, cavada pelo rio, resiste.

Assim como Guimarães Rosa, que se embrenhou pela região durante 45 dias em companhia de sertanejos, em 1951, em lombo de mula, tocando boi, nossa expedição parte de Brasília com destino a Arinos, no norte de Minas Gerais, onde a aventura realmente começa.

São nove dias pelo sertão, não de mula, mas a bordo de um caminhão. No caminho até Arinos, o cerrado, apesar de ocupado por extensas pastagens e plantações de soja, ainda sobrevive e começa a mudar aquela primeira imagem de um território sem vida.

O destino é Chapada Gaúcha, porta de entrada para o Parque Nacional Grande Sertão: Veredas, criado nos anos 80 para proteger um patrimônio histórico, cultural e natural da humanidade.

Na chapada, dominada pela pecuária -o mapa da região denuncia a grande extensão de terras ocupadas com pastagens e plantações – as surpresas começam a ser reveladas no Vale do Rio Urucuia, presença constante na obra de Guimarães: “Diadorim era mulher como o sol não ascende a água do Rio Urucuia, como eu solucei meu desespero”.

Corredor ecológico do Vão dos Buracos, farto em água, alimentos e vida, contrasta com a paisagem árida do sertão.

O Urucuia, apesar de castigado pelas longas estiagens, abastece e dá vida ao sertanejo sofrido que habita em seu entorno. Contrastando com os grandes latifúndios, as pequenas propriedades praticam a agricultura de subsistência e se integram em projetos de desenvolvimento. Assim sobrevivem e entendem que história, cultura e natureza se completam e precisam ser preservadas.

Rio largo, pedregoso, o Urucuia desfaz de imediato a ideia de que no sertão não tem água. Um passeio em suas margens e veredas dá a dimensão exata do que a natureza fez neste pedaço do Brasil.

O Urucuia é um dos rios formadores do São Francisco e está na mesma região onde nascem outras duas grandes bacias hidrográficas brasileiras – Tocantins e Paraná-Prata.

Ainda na Chapada Gaúcha, pelo entorno do Parque Nacional, se espalham típicos sertanejos, gente que tem nos antepassados a figura do jagunço, cabra macho, forte, destemido, exatamente como os personagens descritos por Guimarães Rosa.

Aliás, o guia local da expedição anda com um exemplar de Grande Sertão: Veredas debaixo do bra&c,cedil;o, fazendo o elo entre o sertão e as passagens da história de Guimarães.

É num cenário destes, numa vereda de buritis, próximo ao Rio dos Bois e suas águas cristalinas e frias, sentado em volta de um fogão de pedra numa casa coberta pelas palhas do buriti, que se escutam lendas e histórias que fazem parte da cultura deste povo. E não é difícil se ver envolvido nesses contos. O sertanejo por si só é hospitaleiro, chegado numa prosa.

Cenário permeado de verde que contrasta com a paisagem árida

Nos arredores de Chapada Gaúcha, o Parque Nacional Grande Sertão Veredas transborda vida e retrata o dia-a-dia de bravos sertanejos que por anos viveram do que a paisagem escondia.

Estamos no quarto dia da expedição e vamos caminhar pelas praias do Rio Carinhanha, onde as veredas de buritis e a água farta atraem pássaros e animais de todas as espécies. As araras, coloridas e barulhentas, são comuns. Passam horas se alimentando dos frutos dos buritis.

Com sorte é possível avistar tamanduás e emas. A palmeira típica da região dos cerrados é sinônimo de água. Todo sertanejo sabe que, onde tem buriti, tem água.

Cachoeira do Rio Pandeiros forma piscina de águas límpidas e claras.

É neste cenário que está um dos mais belos atrativos do Parque Grande Sertão Veredas: a Cachoeira do Mato Grande. Guimarães Rosa conta no livro que às margens desta cachoeira Antônio Dó, o jagunço justiceiro do sertão, livrou a região de um fazendeiro mau, dono das terras onde fica a queda d’água.

Antônio Dó é um personagem da vida real e a história é verídica. É conhecida e contada por todos que ali moram. De volta à cachoeira, é hora de um bom mergulho nos poços que se formam nas inúmeras cachoeiras menores, logo abaixo da Mato Grande.

Não menos impressionante é o contraste entre a paisagem árida, o chão marrom e as árvores retorcidas, com o verde do vale no Vão dos Buracos, uma vasta região que parece ter sido cavada no chão seco do sertão.

O Vão dos Buracos é na verdade um grande corredor ecológico, farto em água, alimentos e vida. No passado, o lugar, de difícil acesso, era usado pelos jagunços como refúgio, que ali se escondiam à espera de um novo serviço.

Velho Oeste à brasileira

Casas conjugadas na Serra das Araras lembram os tempos dos jagunços: objetivo era dificultar emboscadas.

Nossa aventura pelo sertão prossegue em seu sétimo dia. Deixamos para trás Chapada Gaúcha e seguimos rumo ao norte, para Januária, passando pelo Liso do Sussuarão, uma vasta planície no alto da chapada que se perde no horizonte.

A vegetação do cerrado realmente impressiona pela variedade de plantas que os moradores, mais do que ninguém, sabem para que fim podem ser usadas. Remédio para dor de estômago, antiinflamatório, cicatrizante… O sertanejo reconhece com destreza na vegetação a cura de seus males.

Curioso, no caminho do Sussuarão, é o Rio Pardo. Contam os moradores que o rio não aceita pontes sobre suas águas. Todas as pontes construídas sobre ele desabaram.

Realidade ou fantasia, a verdade é que a ponte que liga uma margem à outra do Pardo é natural, o próprio rio cavou. Já saindo do Liso do Sussuarão, o vilarejo da Serra das Araras é um convite à visitação.

Peculiaridade

As casas construídas parede com parede chamam a atenção. Afinal, com tanto espaço, por que casas conjugadas em pleno sertão? A explicação vem dos tempos dos jagunços.

Caminho natural dos “foras da lei” rumo ao esconderijo do Vão dos Buracos, não raro na vila havia tiroteio. Para ,dificultar a vida dos jagunços em uma possível emboscada, as casas foram construídas umas encostadas às outras. As marcas deste tempo estão espalhadas pela vila. Antônio Dó também deixou por aqui sua marca.

Na mercearia da vila, um tampo de mesa com estilhaços de bala de um tiro disparado pelo jagunço justiceiro lembra o tempo da jagunçagem, enquanto a história é contada pelo dono da mercearia. Antes de terminar o dia, um mergulho nas cachoeiras de águas limpas e transparentes do Rio Pandeiros.

Tesouros ocultos em Januária

Alessandro Schwonka/Terral Expedições
Na entrada da Gruta do Janelão, paredão de 180 metros de altura dá dimensão da magnitude do lugar.

Reencontramos o Rio São Francisco em Januária, no final da tarde. O pôr-do-sol no “Velho Chico” é deslumbrante. Januária exala história e o velho jeito mineiro de viver.

É do tempo do império e guarda no casario colonial traços de quando ainda era Brejo do Amparo e Porto do Salgado, onde os barqueiros tinham estalagem e entreposto para o vaivém de mercadorias ao longo do São Francisco.

Com mais de três séculos de história, a cidade conserva uma das mais impressionantes obras do barroco mineiro: a igreja de Nossa Senhora do Rosário, levantada em 1688 por ordem dos Jesuítas em um quilombo.

Desde cedo Januária mostrou sua vocação econômica no plantio de cana-de-açúcar. A umidade natural do solo e o clima da região fizeram surgir engenhos e alambiques que acabaram dando ao município a condição de produtor da melhor cachaça do mundo. Hoje são mais de 30 engenhos, com uma produção que é exportada para praticamente todos os países europeus.

Mas Januária não tem só a cachaça para se orgulhar. Nos arredores do município há cavernas que escondem verdadeiros tesouros. Estalagmites, estalactites, travertinos e até mesmo espeleotemas raros como flor de aragonita e chão de estrelas, formações calcárias que levaram centenas de anos para se consolidarem, deixam qualquer um deslumbrado.

Espeleotema Flor de Aragonita é uma das raridades encontradas no local.

Em nosso último dia de expedição uma lembrança para toda a vida – as mais imponentes cavernas já conhecidas no Brasil. No Parque Nacional Cavernas do Peruaçu é que se percebe o quanto parecemos formiguinhas diante da natureza.

Logo na entrada da Gruta do Janelão a dimensão do que se pode esperar: um paredão de 180 metros de altura dá acesso à caverna onde há várias clarabóias naturais, cavadas pelos movimentos geológicos, que fizeram surgir no interior uma vegetação sem igual, quase pré-histórica.

Esta também é a sensação que se tem ao se deparar com a maior estalactite viva do mundo. A “Perna da Bailarina”, como ficou conhecida a formação, tem 27 metros de altura.

Por fim, ao deixarmos Januária para trás, em nosso nono dia de expedição, rumo a Montes Claros, ficamos com a sensação de ter expandido os horizontes do conhecimento e um pouco mais conscientes da vasta cultura do povo brasileiro.

De Minas Gerais saímos de alma lavada. Não sem antes ouvir de nosso guia as sábias palavras escritas por Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas: “O senhor… Mira veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior”.

Interessado na expedição?

Em julho, esta viagem pela história, descrita por um dos mais renomados escritores brasileiros, será refeita. A proposta é de Alessandro Schwonka, da Terral Expedições, de Curitiba.

“É uma oportunidade de viv,enciar o que é o sertão e resgatar a história de um pedaço do Brasil que tem muito a acrescentar à cultura e ao conhecimento”, adianta.

Serão nove dias e oito noites, partindo da capital paranaense no dia 18 e seguindo o mesmo roteiro, com retorno previsto para o dia 26. O pacote, incluindo terrestre, pernoites e refeições, além de seguro e guias, sai por R$ 2.160. Interessado?

Dá para ter um “ensaio” antes, já que a Terral vai promover uma mostra de fotos dos pontos da expedição no próximo dia 29, em Curitiba. Depois, prepare as pernas, já que o roteiro inclui caminhadas pelos pontos descritos e tem grau de dificuldade intermediário. Informações: (41) 3352-1219.

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