Fotos: Jaime Bórquez |
Paradise deixa um gosto de quero-mais nos últimos momentos dessa viagem insólita ao continente gelado. |
A viagem continua navegando pelo Mar de Scotia, para logo cruzar a Convergência Antártica, considerada uma das maiores zonas físicas e biológicas do planeta. Os icebergs já são presença comum na paisagem. Desde a saída de Buenos Aires até agora, o termômetro tem descido vinte graus e isso se nota em cada saída que fazemos aos decks do navio. A viagem da Geórgia do Sul até a Ilha Elefante dura dois dias, em um poderoso barco moderno. Shackleton fez o trajeto em dezessete pavorosos dias e em um bote de madeira. E aqui estamos os passageiros do Nordnorge, de cara a uns rochedos cobertos de gelo e neve, com paredes quase verticais, onde os 22 homens de Shackleton esperaram pelo resgate. Foi aqui que chegou o pequeno navio Yelcho ao mando de Luis Pardo, da marinha chilena, com Shackleton e seus dois companheiros, depois de vários meses e quatro tentativas frustradas de resgate em outras naves. O maior orgulho desse corajoso irlandês foi o fato de não ter perdido nenhum homem depois de, como disse ele numa carta a sua mulher, ?ter atravessado o inferno?.
Último local de visitação, a Ilha Decepção é onde há o único vulcão ativo do mundo em cuja cratera se pode penetrar de navio. |
Todos nós, os passageiros do barco, saímos e observamos silenciosos esse marco na história da aventura e coragem da raça humana. O capitão do Nordnorge faz soar a sirene três vezes, em homenagem ao capitão Pardo e aos homens do Endurance. É muito difícil não se emocionar neste momento, principalmente para quem sabe dessa incrível história. Até este lugar chegaram os homens do Endurance depois de passar 497 dias sem pisar em terra firme, vivendo à deriva em pedaços de gelo antárticos. Estiveram ali do 14 de abril até o 30 de agosto de 1916. Cabe salientar que o Endurance zarpou de Londres em 1.º de agosto de 1914.
Já estamos em águas antárticas e nos preparamos para descer em Turret Point, na Ilha Rei George, lar de pingüins adelie, focas de Wedell e elefantes marinhos. Nenhum deles se incomoda muito com a invasão destes seres bípedos trajeados de azul, cheio de câmeras fotográficas e de vídeo. Mesmo assim, é bom manter certa distância destes animais. Há ninhos e ovos por todo lado. Sempre é prudente olhar muito bem por onde se caminha, já que o lobo marinho, embora pareça inofensivo, costuma dar bons sustos nos invasores do seu território. Escura sua pele, escura a areia da praia, é fácil não perceber sua presença e dar de cara com ele aos nossos pés. Após esta parada, nos dirigimos à base Artowski, da Polônia. Aqui nos esperam com café quentinho, bolachas e, com um pouco de jeitinho, uma reconfortante vodka. Aproveitamos para aprender a dizer saúde em vários idiomas: nasdrovia, prosit, salud, cheers!!! Há tempo para comprar souvenirs, usar carimbos postais que provarão nossa presença em lugar tão distante e raro, tirar fotos com os donos de casa e, com gestos, saber um pouco dessa dura e isolada vida que levam ali.
Na Praia de Whaler Bay, pode-se participar do ?batismo antártico?: só para corajosos. |
A navegação continua por entre os gelos, montanhas cobertas por neves eternas, canais tranqüilos com águas de espelho, cenários absolutamente cativantes. Canal Errera, Danço, Cuverville e Rongé Island, Neko Harbour, Canal Lemaire, todos de extraordinária beleza. Mas há um lugar impossível de esquecer: Paradise Bay. Chegamos aqui com um sol esplendoroso. Há centos de pingüins brincando nas águas, passa uma baleia muito perto do navio, leopardos marinhos descansam em cima de gelos flutuantes, skuas, preteles e gaivotas acompanham nossa navegação, uma verdadeira sinfonia da vida na Antártica. Nada para contar, só admirar e guardar para si momentos inesquecíveis da nossa vida neste planeta.
Durante a viagem há várias paradas, embora estas possam ser suspensas ou trocadas de horário, dadas as condições do variável clima antártico, que não é o mesmo do Caribe, claro, e é bom entender essa grande diferença. Por isso, cada passageiro deve se considerar um expedicionário, sujeito ao tempo inclemente, às fortes nevascas, aos ventos que congelam o rosto, as águas revoltas, com icebergs e banquisas de gelo que, às vezes, dificultam o desembarque dos botes zodiac. Se há uma coisa que se nota nesta viagem é a preocupação quase obsessiva que o staff do navio dedica à segurança dos passageiros. O pessoal cuida também que ninguém contamine os lugares visitados, nem sequer permite que carreguemos uma pedrinha de lembrança. Não é permitido nem urinar em terra, pense nisso antes de cada saída. Fumar? Só em delimitados lugares do navio e nem tente jogar bituca no mar. Não usamos nossos próprios sapatos nos passeios, só as botas de borracha que são desinfetadas exteriormente antes e depois de cada expedição. Ao visitar a base Verdnadskiy pode-se comprar ?matrioskas? de pingüim e beber novamente um bom gole de vodca. Continuando pelo Canal Neumayer se chega a Port Lockroy. Aqui há uma base inglesa transformada em museu, que mantém intocados os utensílios que seus habitantes usaram entre os anos 50s e 60s. Um pequeno túnel do tempo nesta viagem.
O último lugar a ser visitado é a Ilha Decepção, talvez o único vulcão ativo do mundo em cuja cratera se pode penetrar de navio. Sua última erupção foi em 1970 e destruiu completamente a base chilena Pedro Aguirre Cerda. Na Praia de Whaler Bay pode-se participar do batismo antártico. É hora de tomar coragem e nadar nas águas deste continente. Não acredita? Há fotos que provam isso. Aqui os passageiros do Nordnorge entram no frio mar da baía para depois se deliciar nas quentes águas que brotam na praia, produto da atividade vulcânica presente no lugar. Um bom gole de rum cai perfeito neste momento. Este é o inverossímil final de uma viagem também incrível. E se você se pergunta: por que visitar a Antártica? A frase de Sir Edmund Hillary da sua razão para subir ao Everest serve como resposta: ?Porque está ali?.
O cruzeiro finaliza em Ushuaia após singrar as movimentadas águas da temida passagem do Mar de Drake; mais uma vez agradecemos aos noruegueses terem construído este navio com perfeitos estabilizadores. Embora o duro clima que possa nos tocar durante os dezoito dias que dura esta exploração pelas águas antárticas, quem tem espírito aventureiro e desbravador dirá, com certeza, que esta viagem teve gosto de quero-mais… (JB)