Jaime Bórquez |
Desembarque em New Island, onde se avista uma impressionante quantidade de aves. |
Zarpamos às 20 horas em ponto do Porto de Buenos Aires. Temos pela frente três dias e meio de navegação até as Ilhas Falklands-Malvinas. Mas não creia que vai se chatear a bordo olhando esse mar quase infinito pela escotilha. Todos os dias há palestras e filmes sobre diferentes temas, todos relacionados de alguma forma com nossa viagem e com o que vamos visitar: a vida de Roald Amundsen, a Guerra das Malvinas, geologia antártica, fauna da região e, obviamente, a odisséia de Sir Ernest Shackleton, o último grande herói do século XX.
Esse personagem se transformará em guru e inspiração durante toda a viagem, já que o Nordnorge percorre praticamente todos os sítios por onde esse corajoso irlandês passou em seu afã de salvar a tripulação do Endurance. A primeira parada é na pequena Ilha de Westpoint. É, também, o primeiro encontro com a fauna local.
No setor do Nariz do Diabo, milhares de albatrozes, pingüins e outras aves aninham na paz que brinda esse remoto ponto do planeta. O rei aqui é o pingüim macaroni, com seu penteado estilo punk e sua engraçada forma de caminhar, que lembra o Carlitos. Os expedicionários vibram com essa, a sua primeira experiência de contato direto com a natureza do confim do mundo. Antes de abandonar a ilha, há um tea-time, tipicamente britânico, com bolo e cookies em casa de Roddy e Lily Napier, sobrenome que ecoa em Westpoint desde 1879. A bandeira britânica, ou Union Jack, está sempre no alto do mastro do embarcadouro, mas, ao se lhes perguntar se eles se sentem ingleses afirmam com orgulho, ?não, nós somos absolutamente kelpers!?. Assim sentem-se todos os antigos habitantes dessas ilhas.
Um dos reis da fauna local é o pingüim macaroni, com seu penteado estilo punk e sua engraçada forma de caminhar. |
A palavra kelper deriva de um tipo de alga marinha, muito profusa na região.
Se a quantidade de aves que vimos em Westpoint foi impressionante, na visita a New Island essa impressão é ainda maior. Numa falésia na borda do Atlântico Sur, uma colônia de aves das mais diversas aninha e choca seus ovos. Ficar a pouca distância de um albatroz é uma experiência difícil de esquecer. Esse bicho enorme pode alcançar facilmente os três metros, com as asas abertas e, ao voar em cima das nossas cabeças, o ar soa como se uma asa-delta nos despenteasse.
Chegar a Porto Stanley produz algo indescritível em que lembra os dias da odiosa guerra entre argentinos e britânicos.
As paisagens nos parecem familiares, só faltam os aviões Sea Harrier em vôo rasante pela paisagem de suaves colinas que circundam o porto, como as cenas que vimos tantas vezes na tevê. Caminhar pelas ruas da pequena cidade é se sentir em alguma vila da Inglaterra.
Pubs absolutamente londrinos não deixam nenhuma dúvida sobre quem exerce soberania em Stanley. |
Os carros trafegam pela esquerda e isto dá mais de algum susto nas visitas que caminham despreocupadas. Casas de tijolo e madeira, igrejas, loja do correio, cabines telefônicas e, claro, pubs absolutamente londrinos não deixam nenhuma dúvida de quem exerce soberania aqui.
O pequeno museu da vila é uma visita imperdível. Aqui se resume a história kelper, desde seu descobrimento, passando pela colonização, até as tristes lembranças da guerra de 1982. Antes de deixar Stan-ley, é bom entrar num pub, beber uma encorpada cerveja Guinness, jogar uns dardos e pagar em pounds, com a rainha Elizabeth na cara da moeda.
Não faça conversões amargas, pague feliz e pense que nem todos os dias se tem a oportunidade de pisar um chão com tanta história e, de passagem, ouvir o God Save the Queen a tão curta distância do Brasil. (JB)
Odisséia destaca o corajoso Shackleton
Iceberg na Ilha Elefante, uma das paradas de Shackleton durante expedição que o transformou em lenda. |
Dois dias num Atlântico calmo, com tempo para ler Endurance, livro mais do que adequado para esse trajeto, pois é exatamente a rota da expedição de Shackleton. Uma viagem que se transformou em lenda. Chegamos a Fortune Bay, na Ilha Geórgia do Sul, onde a indústria baleeira teve grande atividade. Os noruegueses estiveram instalados aqui por anos, mas Fortune Bay ficou intocada, não teve assentamentos humanos. Hoje, a baía é dominada pelos elefantes e leões marinhos, focas e um grande número de aves, como skuas e o petreles gigantes. Embora o animal mais fotografado nesta ilha seja o pingüim rei. A cor amarela do seu colarinho que vai virando laranja na medida que sobe na face e o preto profundo de sua cabeça, seu porte avantajado e sua postura imponente não deixam dúvidas sobre sua linhagem. Ele obviamente tem sangue azul…
O túmulo de Shackleton é o mais visitado – e também fotografado. |
Se por acaso vir um alce não pense que está tendo alucinações. Esses belos animais foram introduzidos faz muitos anos para a caça e alimentação dos povoados baleeiros. Hoje, são mais de dois mil alces na Geórgia do Sul. Habitantes? Cabem numa Kombi. O último censo chegou aos doze seres humanos morando na ilha!
Quando terminou a matança de baleias, acabou também a razão de viver aqui na ilha. Hoje, ao visitar as instalações de Leith Harbour, Husvik, Stromnnes e Grytviken imaginamos a poderosa indústria que existia em cima das indefesas baleias. No Museu de Grytviken podemos ter uma pequena idéia do que isso significava. Nesse fim de mundo existia uma moderna e confortável sala de cinema e as famílias viviam como na Europa, com as comodidades necessárias e outras nem tanto… O museu dedica uma parte a Shackleton, que está sepultado nesse povoado. E qual foi a sua façanha? Um exemplo de persistência, companheirismo e lealdade com os homens da sua expedição no Endurance, no mínimo. Junto a seus 27 tripulantes, após perder o barco no Mar de Wedell, em pleno Pólo Sul, viveu à deriva em blocos de gelo, navegou por águas violentas até a Ilha Elefante, saiu com cinco companheiros dessa ilha para enfrentar novamente mares medonhos num simples bote de cinco metros, por mais de 1.500 quilômetros para chegar até a Geórgia do Sul e pedir ajuda. Mas antes de recebê-la, teve de caminhar 32 horas sem dormir para atravessar a ilha entre geleiras e falésias de gelo, cruzando a ilha de oeste a leste, onde estava o povoado baleeiro de Stromnnes. A odisséia desses homens naufragados na Antártica durou dois anos. Sem dúvida Shackleton merece muito mais que um espaço no museu. (JB)