Altas, espetaculares e em alguns pontos bastante selvagens, as montanhas do apenino abruzes concentram grande parte dos atrativos que a região pode oferecer ao visitante. As colinas, que ladeiam as suntuosas montanhas mostram a delicadeza de uma paisagem não menos importante.
Entre a primavera e o verão, pastagens e pradarias da montanha se colorem com a floração de aproximadamente trinta espécies de orquídeas selváticas, as quais se acrescentam narcisos, gencianas e milhares de outras espécies. A raríssima “stella alpina appennica” se deixa observar apenas nos ângulos mais solitários da Maiella e do Gran Sasso.
Entre as grandes e pequenas paisagens do Abruzzo se move uma fauna de extraordinária riqueza, fato que motivou a criação, em 1922, de uma das primeiras áreas de preservação italiana.
A seguir, novas reservas foram instituídas dando origem ao projeto “Abruzzo Região Verde da Europa” financiado diretamente pela comunidade européia.
Passado glorioso
Apenas tocada pelas rodovias e por muitos símbolos de progresso, as montanhas do Abruzzo foram por muito tempo o palco da história italiana. Reis, imperadores, religiosos e construtores de igrejas, mercadores e pastores deixaram seus traços na paisagem, cuja importância foi compreendida só recentemente.
Por exemplo, apenas nos últimos dez anos foi plenamente apreciada pelos historiadores e arqueólogos a importância do Abruzzo pré-romano. E somente há vinte anos foram exploradas como mereciam as importantes necrópoles de Campovalano, Amplero, Penna Santo Andrea, Scurcola Marsicana e de Celano, bem como a ampla área arqueológica de Corfinio, onde uma célebre lápide recorda que ali, pela primeira vez, uma aliança de povos itálicos utilizou a palavra “Itália”.
Também na Idade Média o Abruzzo foi o centro da história italiana e, atravessando as cidades de Aquila e Piana di Navelli, passava uma das mais importantes vias de comunicação desde o império longobardo.
Antigamente a região foi habitada por fortes e rudes povos montanheses que deram muito trabalho até mesmo a Roma, lembrando as épicas guerras saniticas que duraram até 290 a.C. e que culminaram com a clamorosa derrota do exército romano em Forche Caudine, uma estreita passagem entre os montes.
Apesar deste incômodo episódio histórico, em seguida tornaram-se aliados e a cidade de Teate (hoje Chieti) transformou-se em uma das maiores de todo o Sannio e foi município romano com aproximadamente cinqüenta mil habitantes. Possuía o fórum, diversas termas e templos, um grande anfiteatro, sendo considerado um importante centro econômico e cultural.
Este desenvolvimento foi favorecido sobretudo pela conexão com Roma garantida pela via Claudia-Valeria, uma das maiores estradas romanas, que atravessava a cidade e interceptava a rua principal, hoje denominada Corso Marrucino.
Cenário sugestivo
Os teatinos combateram também contra Pirro, participaram das guerras gálicas e lutaram ao lado dos romanos contra Aníbal.
Uma vez “latinizados”, deram sucessivamente a Roma seus melhores imperadores, descendentes das famílias nobres Flavi e Antonimi.
Os vestígios do assentamento romano na região podem ser encontrados nos dez sítios arqueológicos do Abruzzo antigo, considerados pelos estudiosos como verdadeiros “museus ao ar livre”: Alba Fucens, Amiternum, Peltuinum, Pallanum, Corfinium, Interammia Praetutiorum, Teate Marrucinorum e Juvanum, este último, imerso em um cenário de sugestiva beleza, apoiado sobre um planalto de aproximadamente mil metros de altitude.
Ele se sobressai contra o fundo maciço da Maiella, denominada de “montanha Mãe” pelos antigos habitantes. O seu nome, do latim “iuvare” (jovem), é relacionado à saudável qualidade das águas de uma nascente que ainda hoje escorre ao lado da entrada principal.
Os restos arqueológicos são a testemunha de um passado glorioso, quando Juvanum era o centro econômico e administrativo de tona a zona adjacente, habitada naquela época pelos povos sanitas Carnicini.
Os edifícios mais antigos remontam ao III século a.C. e são constituídos pelo conjunto do Santuário, com dois templos situados na parte mais alta da colina da necrópole.
Este santuário, um verdadeiro recinto sagrado, era circundado por fortes muros feitos com blocos de pedra visíveis ainda hoje. Nos sete museus de Chiete também é possível seguir contemporaneamente a evolução urbana e político-cultural dos assentamentos até a Idade Média.
Além disso, em toda a região, ainda podem ser vistos estupendos restos daquela época nos castelos, sempre edificados em lugares estratégicos e conectados às mais importantes vias de comunicação.
Alguns deles, como aqueles de Crecchio, de Casoli, de Roccascalegna, de Montedorisio e de Palmoli, conservam ainda o antigo esplendor, enquanto muitos outros se transformaram em ruínas.
Como se não bastasse tudo isso, o Abruzzo é também aquele que ainda mantém viva uma arte culinária fiel ao seu passado e que, através de seus produtos mais característicos, melhor conserva as tradições, os rituais, os mistérios e a magia da sua cultura.
Magia e cultura na culinária abruzesa
Eunice Athaide
A culinária abruzesa exprime a intensidade com que foi “sentida e vivida” a tradição de magia e superstição, sem excluir o sensual panteísmo do passado. É verdade que hoje, com a construção de modernas rodovias e os progressos da comunicação, o isolamento milenar da região desapareceu.
Mesmo assim, a memória e a cultura dos abruzeses são ainda vivas e peculiares, sobrevivendo à industrialização e ao turismo massificado.
Os vestígios desta tradição encontram-se nos ritos religiosos e laicos que preenchem o calendário festivo das cidades e burgos, na sobrevivência tenaz dos inúmeros dialetos ainda em uso, mesmo com a homogeneização televisiva, na conservação dos hábitos alimentares observados não apenas nas mesas mas também nos produtos das chácaras, nos laticínios e nas indústrias artesanais.
Ingredientes
Os ingredientes da cozinha abruzesa eram pobres na sua origem, tendo em vista que a população, por muitos séculos, viveu de uma modesta extração agrícola. Por este motivo, não se deve procurar explicação para estes hábitos nos suntuosos banquetes dos nobres castelões.
O hábito de festejar as ocasiões solenes com intermináveis refeições, denominadas em dialeto de “panarde”, nasceu da miséria: os camponeses “reemborsavam-se” desta maneira dos longos e penosos jejuns.
Um almoço de matrimônio respeitável não podia ter menos de vinte pratos e uma refeição tradicional oferecida a um hóspede ilustre podia chegar a trinta.
Quem não resistia a tanta opulência corria o risco de ofender irremediavelmente aquele que havia organizado o pantagruélico festim.
Antigos sabores
As “panardes” se realizam hoje apenas nos banquetes matrimoniais que duram em média de 12 a 15 horas. Permanece, todavia, a tradição de uma série de produtos característicos que pertencem à história e à cultura da região, da qual saíram dinastias ilustres de cozinheiros que espalharam pelo mundo inteiro as suas artes.
A confirmação disso está na Sagra (festa popular) dos Cozinheiros do Sangro que, no segundo domingo de outubro, reúne, em Villa Santa Maria, os artistas italianos do forno e fogão provenientes também do exterior e os restaurantes expõem em barracas alinhadas na rua principal o requinte dos seus cardápios.
O pequeno vilarejo construído sobre o monte Vecchio e hoje sede da “Comunità Montana Valsangro” foi por muito tempo feudo dos príncipes Caracciolo de Napoles, os quais iniciaram a tradição culinária nesta cidade, hoje conhecida internacionalmente como a “città dei cuochi”.
A receita mais famosa da cozinha abruzesa é feita com um macarrão feito em casa chamado de “maccheroni alla chitarra” (macarrão à guitarra). Foi assim denominado porque é feito com um instrumento de cordas, uma espécie de moldura de madeira com sutis fios de aços estendidos horizontalmente a uma distância de um milímetro. A massa de farinha e ovos, bastante trabalhada com as mãos, é aberta em folhas (“pèttole”) que são colocadas sobre estas cordas e prensadas com um cilindro também de madeira (“matterello”).
Os fios de aços da “chitarra” cortam a massa em tiras finas, duras, de uma bela cor dourada, resistentes ao cozimento e prontas para receber o tempero típico: um molho de tomates fortalecido com toucinho defumado, perfumado com a onipresente pimenta picante e o queijo de ovelha ralado. Os outros molhos alternativos podem ser feitos com carne moída de carneiro ou de porco, todos bastante “agressivos”.
Antiga preparação
A tradição da cozinha abruzesa inclui os “maccheroni al ceppo” ou “alla molinara”, também conhecidos como “strangolapreti” (estrangula-padres), que se preparam com uma técnica muito difícil: faz-se uma incisão dentro da massa e com uma série de movimentos rápidos e precisos com os dedos obtém-se um longo fio de diversos metros de comprimento.
Este fio é, em seguida, enrolado como se fosse uma meada e cozido, mantendo-se incrivelmente sutil e sem arrebentar ou grudar.
A técnica da confecção da massa, passada da fase artesanal para a industrial, fez surgir na região uma série de modernas fábricas que hoje fazem concorrência até mesmo em âmbito internacional. O segredo é a farinha de grão “duro” empregada, além da pureza das águas de riachos provenientes diretamente das montanhas e a preservação, mesmo no trabalho mecânico, das antigas preparações manuais e caseiras.
Como molho ainda são conservadas as simples e rudes receitas dos pastores preparadas de diversas maneiras com carnes de ovelha, carneiro, castrado e cabrito . Dentre estas receitas destaca-se o carneiro a “catturo”, nome dado a um grande caldeirão de cobre sustentado por uma corrente a um tripé de ferro.
A carne cortada em pedaços é colocada no “catturo” juntamente com óleo de azeitonas, toucinho, salsinha, folhas de sálvia, cebola, pimenta picante e cozido por algumas horas sobre o fogo da lareira ou em um buraco no chão.
O cabrito é quase sempre “incaporchiato”. Os pastores prendem os animais em estruturas especiais feitas de vime que os constringem a permamenecer imóveis e, assim, engordam rapidamente. Quando são abatidos, a carne se apresenta com uma excepcional maciez. Naturalmente o porco não poderia faltar e se apresenta em forma de salames muito aromáticos e picantes.
Bastante típico é o coelho “alla chietina”, assado ao forno com recheio de fatias de presunto, alecrim e manteiga.
Também o mar participa deste faustoso banquete com seus moluscos, crustáceos e uma variedade muito grande de peixes, dando origem aos famosos “brodetti” e muitos pratos da culinária internacional, como as “triglie agostinelle”, minúsculos peixes de cor avermelhada enfarinhados e fritos, bem como as “sogliole alle olive” ú(linguado) com azeitonas.
Uma refeição abruzesa termina sempre com um doce, feito quase sempre à base de amêndoas e nozes como o “parrozzo”, o “pan ducale”, o “pan dell?orso” e o tradicional “fiadone” feito com queijo fresco ou ricota e chocolate.
Sagras gastronômicas
Todas estas especialidades (e muitas outras) podem ser saboreadas nas “sagras” (festas populares ao ar livre) destinadas aos produtos típicos de cada região e realizadas em todas as cidades, burgos e aldeias.
Dentre estas destaca-se a antiga Sagra das Favas em Polutri, um importante burgo de Chiete, que nos dias 5 e 6 de dezembro faz ferver estes legumes dia e noite em imensos caldeirões distribuídos pelas ruas.
Em Macchia da Sole, lugar de pastores e ótimo leite, a sagra é dedicada ao queijo de ovelhas e cabras. A aldeia de Basciano reúne grande número de pessoas no segundo domingo de junho, em volta do seu famoso presunto. Interessante é a Sagra de Setembro, a “Arsita”, onde se festeja o “coatto”, um prato preparado com a coxa de ovelha cozida por diversas horas.
Estas festas invadem o calendário durante todo o ano e representam também um irresistível convite para visitar o Abruzzo. A cozinha abruzesa, de fato, deve ser saboreada localmente e quase sempre é transmitida apenas entre as aldeias mais próximas, sendo essencialmente ligada aos produtos locais.
Suas receitas mantêm o segredo dos antigos sabores e, enriquecidas com os perfumes de ervas aromáticas, simples ou extremamente elaboradas, exigem sempre longas preparações às quais as mulheres abruzesas se dedicam com religioso empenho.
*Esta foi a segunda reportagem da série sobre Abruzzo, assinada por Eunice Athaide e com fotografias de Pierluigi Marsigli. No próximo domingo, a última reportagem será sobre a fé e o folclore regionais.