Tabagismo, o perigo ainda ignorado

Nos Estados Unidos, um relatório do National Institute of Health (NIH) – publicação 93 – 3461 de 1992 – aponta 61 mil mortes de mulheres com 35 anos ou mais, por conta de doenças vasculares decorrentes do tabagismo. Mesmo divulgada a circunstância de que o risco de infarto do miocárdio se reduzia em 50% após um ano de abandono do cigarro, apenas 2,5% das fumantes alcançavam tal objetivo. A World Health Organization (WHO) estima que o tabaco seja a segunda maior causa de óbitos no mundo, e que a cifra de 5 milhões de mortes por ano é realista. Cifras mais recentes do U.S. Department of Health and Human Services (maio, 2003) apontavam 430 mil mortes de norte-americanos ao ano por conta do tabagismo. No Reino Unido as cifras de mortalidade devido ao tabagismo, no ano de 1997, foram de 117.400, para um total de 628 mil óbitos.

As folhas da solanácea Nicotiana tabacum contém entre 2,5% e 5% de nicotina, um alcalóide com potente bioatividade. Na fumaça do cigarro se encontra em fase gasosa (volátil), com cerca de 500 componentes daninhos (monóxido de carbono, amônia, cianeto de hidrogênio, formaldeído, acroleína e benzeno, dentre outros) e a fase particulada, com outros 3.500 componentes como por exemplo, nicotina, nornicotina, anatabina, anabasina, N-nitrosaminas, fenóis e os temíveis e mais carcinogênicos HPAs (PHAs), Hidrocarbonetos PoliAromáticos.

Comprovou-se que o diol epóxido derivado deste último especificamente, danifica o DNA de um importante gen supressor de tumores. É o prejudicial alcatrão (ca. 10 mg / cigarro). Em fevereiro de 2000, o Royal College of Pysicians expediu um relatório no qual ?os cigarros são instrumentos muito eficientes de administração de nicotina que é uma droga adictiva tal qual a heroína ou cocaína?. Como a nicotina é uma base terciária fraca, o pH da fumaça do cigarro (5,5; nicotina ionizada) não favorece sua absorção direta pela mucosa da boca, o que efetivamente acontece com a fumaça dos cachimbos e charutos (pH 8,5; niocotina não ionizada).

O destino maior da fumaça inalada (fases gasosa e particulada) é, portanto, o alvéolo pulmonar e a partir daí, via corrente circulatória, a ligação da nicotina nos receptores colinérgicos nicotínicos do cérebro e outros tecidos. Cerca de 80% da nicotina é metabolizada pelo fígado (e também pulmões e cérebro) a cotinina, a qual no passo seguinte, como hidroxicotinina, é excretada na urina. O tempo de meia vida na nicotina no corpo é de cerca de 60 minutos, o que quer dizer que 1 miligrama de nicotina absorvida a partir daquela disponível em um cigarro (8 a 10 mg), após quatro horas, estará reduzida a apenas 0,125 mg (o que explica a ânsia do fumante em repetir o ato de fumar com elevada freqüência). O tempo de meia vida da cotinina, todavia, se alarga para cerca de 20 horas. Uma pesquisa comparativa para o consumo de mesmo número de cigarros / paciente demonstrou que os níveis de cotinina plasmática é maior em negros americanos do que em brancos caucasianos, o que pode estar correlacionado com a maior ocorrência de câncer de pulmão (os componentes do alcatrão acompanham a nicotina durante a inalação da fumaça) na primeira população.

A primeira ação da nicotina é acarretar a liberação de adrenalina e, portanto, acelerar o batimento cardíaco e daí o aumento da pressão sanguínea. A nicotina também bloqueia a liberação de insulina, um hormônio mobilizador de glucose circulante. Isto pode explicar a sensação de menor fome que o fumante alega em função da hiperglicemia (sobra circulatória de glucose).

Especificamente no cérebro, o efeito da nicotina consiste em liberar mais acetilcolina entre os neurônios, e daí a capacidade de reagir mais rapidamente, e de prestar maior atenção ao trabalho. Ainda paralelamente, mais dopamina e glutamato (outros neurotransmissores da comunicação inter-neuronal) são liberados criando sensações de prazer, além de melhor capacidade de aprendizado (memória).

O cérebro ainda libera mais endorfinas (?aspirinas? metabólicas) criando a sensação de euforia. Com respeito a outras ações positivas ou aplicações farmacológicas da nicotina estão a doença de Alzheimer (que inicia com a inativação de receptores colinérgicos em determinada região do cérebro), e a Síndrome de Tourette (?tiques? das mãos, braços e cabeça), nas quais se recomenda então a aplicação de adesivos (selos) que liberam a nicotina de forma gradativa.

Nenhuma das considerações acima podem ou devem justificar o vício do tabagismo, posto a cabal comprovação da implicação do mesmo na geração do câncer (pulmonar e de outros tecidos) e do enfisema, além da associação a doenças cardiovasculares (infarto, derrame). A nicotina do cigarro causa dependência (as mensurações psicológicas e fisiológicas estão hoje bem comprovadas) e o alcatrão a ela associado, o câncer. Deixar de fumar é um desafio difícil: crises de ansiedade, irritabilidade. Mas deixar de fumar é afastar o risco de doença dolorosa e fatal.

O maior bem que possuímos é a vida. O cigarro faz dela uma fatalidade, além de propiciar mau exemplo às crianças e jovens, além de conspirar também contra a saúde deles, na condição de fumantes passivos. O ato de pseudoelegância ou autocomplacência de mudar para os cigarros norte-americanos (limitados a 10 mg de alcatrão, 10 mg de monóxido de carbono e apenas 1 mg de nicotina) pouco adianta pois o fumante vai consumir maior número de cigarros por dia, e o efeito líquido negativo passa a ser o mesmo.

Fumantes, graças ao envenenamento do monóxido de carbono (CO), que se liga mais eficientemente à hemoglobina do que o oxigênio, tem a capacidade de transporte deste último reduzida em pelo menos 15%. Em camundongos injetados venosamente a DL50 (dose letal média) da nicotina é de apenas 0,3 mg / Kg de peso, o que também explica que um dos usos da nicotina na forma de sais (sulfato, salicilato) é como inseticida e antihelmíntico.

Nada substitui a força de vontade, com o abandono radical do cigarro, mas algumas alternativas podem ser úteis: nebulizadores, pastilhas e adesivos à base de nicotina. Estes, pelo menos, estão livres do tenebroso alcatrão. Num extensivo estudo feito por pesquisadores noruegueses (Bjartveit, K. e Tverdal, A.; 19.201 mulheres monitoradas no período de 1970 a 2002) o consumo de cigarros, mesmo na base de 1 a 4 por dia, foi associado a maior risco de câncer de pulmão.

José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR, junto ao Departamento de Farmácia, Pesquisador 1A do CNPq e 11.º Prêmio Paranaense em C&T.

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