Começa hoje, em Túnis, capital da Tunísia, a segunda fase da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, organizado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Na pauta, um assunto polêmico: especialistas do mundo inteiro vão discutir, no evento que tem três dias de duração, quem afinal de contas tem o direito de controle sobre a internet.
Mesmo não parecendo natural que a internet precise de alguém que a gerencie, para funcionar, ela precisa de um administrador capaz de cuidar dos aspectos técnicos, como padronização de URLs, como os .com e .net. Durante três décadas esse papel foi feito pelo americano e professor da Universidade do Sul da Califórnia, Jon Postel. Quando ele morreu, em 1998, suas funções foram transferidas para a Icann (Corporação da Internet para Nomes e Números Designados, sigla em inglês).
Hoje o órgão está sob responsabilidade do Departamento de Comércio dos Estados Unidos (DoC). É lá que se encontram dez dos 13 servidores raiz, que são os centros de acesso da web, pois sabem onde um computador tem que ir para achar o endereço de outra máquina. Outros dois ficam na Europa e um no Japão.
O DoC e a Icann estão ligados por um contrato que termina no fim de 2006, o que na prática dá ao governo americano o poder de vetar as decisões do órgão. E o governo de George W. Bush já adiantou que, independentemente do que acontecer na conferência da Tunísia, será contra a criação de um fórum multinacional que substitua o organismo de controle de nomes e números de domínios na rede.
O governo brasileiro faz parte de um grupo – o qual fazem parte a União Européia, China e Índia – que espera que a conferência aponte para uma nova fórmula para gerenciar a rede mundial de computadores.
Seiiti Arata Junior, que faz parte da secretaria do Working Group on Internet Governance (WGIG), órgão que fez sugestões de modelos de governança para a reunião de Túnis, vê a posição americana como unilateralismo. ?Os EUA vêm argumentando que pretendem manter sua liderança histórica na rede a fim de garantir a ?estabilidade e segurança? da internet. O problema nessa retórica é que o unilateralismo atual não é um elemento que por si garante esses elementos. Ao contrário, pode ser mal utilizado?, aponta.
A Icann, por construção, deveria ser um órgão com diversidade geográfica em seus componentes e processos eleitorais dentro dos seus segmentos. ?Mas o que ocorreu é que depois da transição feita entre o esquema acadêmico antigo que governava a internet e o novo, estabeleceu-se o contrato em que o DoC tem que aprovar (ou supervisionar) qualquer alteração que a Icann queira fazer. E isso é certamente ruim e questionável. Mas acredito que terminará em setembro de 2006. Ou ao menos deveria?, aponta Demi Getshko, membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil e um dos dois brasileiros que faz parte da diretoria da Icann.
Dentro do órgão se criou uma estrutura de representação de governos – o GAC (Government Advisory Committee) que é um ?aconselhador?, mas não tem poder de veto ou decisão. ?E isso certamente é considerado insuficiente por muitos governos, ainda mais se considerarmos que o DoC tem supervisão nas decisões do órgão?, explica Getshko. Mas ele afirma que o departamento nunca interferiu numa alteração proposta pela Icann e a diversidade geográfica é respeitada.
Seiiti considera a internet um objeto de interesse público global, e acha que uma forma multilateral de tomada de decisões é melhor que o sistema atual. ?Entretanto, são grandes as críticas contra a praticidade dessa solução. Por isso, vem ganhando força uma outra alternativa: o afastamento dos EUA, com maior independência da Icann?. Mas aí o problema passaria ser garantir a supervisão mínima do órgão. Os EUA temem contaminação política, com China ou Índia, por exemplo, que têm governos autoritários, pedindo mudanças que ferissem a liberdade na rede, o que já é tradição nesses países.
Para Getshko, no que tange a nomes e números, uma reforma do GAC, dando-lhe mais voz, já estaria de bom tamanho. ?Ainda mais porque uma ?estatização? da rede não é algo que agrade a grandes setores da sociedade civil e até mesmo à Comunidade Européia?. Ele diz ainda que receia a utilização de uma estrutura da ONU. ?Em geral elas são pesadas, difíceis e burocráticas. E o controle que os EUA alegam ter não é tão intenso assim. Se pedirem algo de estranho aos operadores dos servidores-raiz, duvido que se cumpra?.
Domínios pornôs geraram desconfiança mundial
Segundo Seiiti Arata Junior, um ponto pouco explorado nos assuntos de governança da internet é a existência de um memorando de entendimentos entre o DoC e a Icann. Esse documento reflete o posicionamento político dos EUA em diversos temas, como direito de marcas, liberdade de expressão, direito concorrencial, privacidade, entre outros relacionados a regras de nomes de domínio. E essas tendências acabaram refletidas num caso notório, quando os EUA pediram ?mais estudos? sobre uma decisão do Icann, que criava o domínio .xxx para sites pornôs, o que na prática colocou a resolução na geladeira.
?No caso específico do .xxx houve uma interferência por parte de lobby vindo de grupos religiosos conservadores, mas o que deve ser observado é que interferências com pouca transparência vêm de muitos anos, como o caso de restrição à criação de novos Top Level Domains (como o .xxx) por pressão de detentores de marcas?, diz o especialista. ?Para eles, quanto mais domínios diferentes, maior seria a dificuldade em controlar o registro abusivo por terceiros, os ?cybersquatters??.
Já Demi Getshko não considera a ação uma interferência direta. ?Quanto ao .xxx, diversos países reclamaram. Brasil e Suécia, por exemplo. Por enquanto, a reclamação americana – de que deveria haver mais estudo sobre isso – é igual às demais. Se o veto ocorrer, a coisa muda de figura?.
Há ainda discussão sobre domínios sugeridos pelos americanos e até já aprovados pelo Icann, como o .travel, que desagradaram outros países, que não têm a quem recorrer. (DD)
Internet 2 não seria solução
Como saída para um possível impasse, já se chegou até mesmo a cogitar a criação de uma outra rede mundial de computadores, já que em tese, os EUA têm até mesmo o poder de tirar um país inteiro da internet. E não há nenhum organismo para se reclamar das decisões ou vetos norte-americanos. ?Tecnicamente isso é possível. Mas para ter uma viabilidade concreta, tal rede deve necessariamente se interconectar de alguma maneira à internet, caso contrário será uma rede com um número irrisório de usuários iniciais e conteúdo irrelevante, comparado com o universo de informações hoje em fluxo na rede? avalia Seiiti Arata Junior.
É o network value – começar uma rede hoje do zero. ?E para realizar essa interconexão, ainda se depende de muitos aspectos de governança da internet. Ou seja: não adianta evitar o problema?. Demi Getshko também acredita ser possível tecnicamente uma nova rede. ?Mas pessoalmente acho uma idéia ruim e destrutiva?. Para ele a solução repousa na decisão americana de abrir mão do Icann já em 2006. ?Se não o fizerem, validarão as críticas que recebem?. (DD)