Passar a vida num leito de UTI, sem poder realizar qualquer movimento, falar, nem mesmo respirar sozinho. Assim são os dias do pequeno Matheus Schmidt, 2 anos, e Fernando Loper, 8. Ambos sofrem de atrofia espinhal progressiva, causado por um gene defeituoso. A atrofia dessas crianças é do tipo 1, conhecida como Síndrome de Werdnig-Hoffman, a mais grave numa escala de quatro variações. É fatal e não tem cura. As atrofias são mais comuns do que se pode pensar: uma em cada 40 pessoas é portadora e um em cada 6 mil nascidos é afetado. Com a aprovação das pesquisas com células-tronco embrionárias, cria-se uma esperança de cura a uma patologia para a qual que a medicina não vislumbra tratamento.
A mãe de Fernando, Adriane Loper, é a personificação da coragem. Divorciada, a engenheira de computação se desdobra entre emprego, pós-graduação e a atenção que dá ao filho, com quem passa a maior parte do tempo. Encontrou espaço ainda para militar. Foi uma das líderes na articulação, em Brasília, da aprovação da Lei de Biossegurança. ?Quando começamos nossa briga, 137 deputados eram assumidamente contra. Falamos diretamente com cada um deles?, conta. A lei foi aprovada por 366 votos a 59, com três abstenções. Severino Cavalcanti, presidente da Câmara Federal, era um dos que sempre se manifestaram contra. ?Tivemos uma reunião com o presidente da Câmara na terça-feira. Ele não tirou a votação de pauta e foi um juiz imparcial?, pondera.
A expectativa de vida de quem sofre da Síndrome de Werdnig-Hoffman é de dois anos. Fernando chegou ao Hospital Pequeno Príncipe quando tinha oito meses. A sorte de sua longevidade, os médicos creditam à mãe. ?Se nascessem nos Estados Unidos, muito provavelmente Fernando e Matheus já estariam mortos?, afirma Adriane. Chega um ponto na vida do portador da doença que o sistema respiratório pára de funcionar, provocando uma parada cárdio-respiratória. ?Lá, a maioria dos pais não permite que os médicos entubem os filhos. Simplesmente deixam eles morrerem?, conta. Adriane, que viu o filho parar de respirar quando estava com ele em casa, diz que nem passou pela cabeça não entubar o filho. Marilza Zava Schmidt, mãe do Matheus, acha que não se pode julgar a escolha desses pais. ?Quem consegue medir até onde uma pessoa agüenta conviver com isso? Mas sei que eu vou até o fim?. Para elas, a esperança não é uma opção, é seu dia-a-dia.
UTI humana
?Quando Fernando chegou, não era permitido que a família ficasse com a criança na UTI. Ele humanizou o hospital?, diz a assessora do Pequeno Príncipe, Denise Angelo. ?Tem gente aqui que nem consegue me ver, de tanto que perturbei?, diverte-se Adriane. Em meio ao trabalho de alfabetizar o filho, ela afixou os nomes de todas as peças da decoração do leito de UTI transformado em quarto. Fernando tem TV e diversos filmes em vídeos, além de muitos livros. Quanto aos enfeites, se não fosse pelos aparelhos que sustentam a vida do garoto, o símbolo do Coxa estaria tão à mostra como no quarto de qualquer pequeno torcedor. ?Essas crianças mantêm a consciência e mentalmente são mais espertos que a maioria das outras?, conta a mãe.
Adriane explica que as crianças não sofrem fisicamente, mas vivem num mundo limitado. O ambiente, portanto, não é de penúria, e sim, de esperança. Marilza se contagiou com o exemplo de Adriane. Não desgruda do filho, com quem passa todas as tardes. Matheus está na UTI desde que completou um mês de vida. ?Ele nasceu normal. Com quinze dias, percebemos que estava meio mole, não firmava o pescoço. Levamos ele ao médico, que não constatou nada. Quando fez um mês, ficamos assustados com a piora na condição dele.? Foi então que o médico deu o diagnóstico. ?É muito doído acompanhar o desenvolvimento da doença?, diz. Casada com o militar Mário, Marilza teve que vir de Santo Antônio da Platina para a capital. A outra filha, Maria Cláudia, de 7 anos, contava na escola que todos os fins de semana tinha que ir ao hospital. ?As professoras não entendiam. Fui chamada para explicar a situação?, conta.
Cura e Deus
Mesmo com a aprovação das pesquisas com células embrionárias, tanto Adriane quanto Marilza sabem que a cura não será imediata. ?Trocamos a lei pela pesquisa, não pela cura?, diz a mãe de Fernando. ?Ainda falta a aprovação do Lula, a regularização e o início das pesquisas, para então se pensar em tratamento. Mas tenho que acreditar que é apenas questão de tempo?, diz Adriane, que não consegue esconder a satisfação com a nova possibilidade de ver seu filho sair da cama.
O leito de Matheus tem uma imagem de Nossa Senhora, mesmo a religião tendo sido um dos maiores obstáculos para que as pesquisas com embriões fosse permitida. Ambas as mães são católicas e dizem que não perderam a fé por causa do que aconteceu em suas vidas ou por causa da posição da Igreja quanto ao assunto. ?Ela não está certa nessa questão. A vida não é um monte de células num tubo de ensaio que vai para o lixo. A vida começa na barriga da mãe?, acredita Adriane. ?O mais cruel foi ouvir em Brasília que, se Jesus sofreu, nós também temos que sofrer. Mas Deus nunca gostaria que nossos filhos sofressem assim?.
Polêmica dos transgênicos continua em pauta
O projeto da Lei de Biossegurança aprovado na noite da última quarta-feira, na Câmara Federal, também trouxe à tona toda a polêmica que envolve o assunto. De um lado, ativistas do Greenpeace alegam que faltam estudos comprovando que Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) não fazem mal nem à saúde nem ao meio ambiente. O Instituto Brasileiro de Defesa ao Consumidor (Idec) engrossa o coro e aponta que também faltam pesquisas nesse sentido. Na outra ponta, sobram elogios ao projeto de lei, especialmente por organizações que representam os produtores rurais. Agora cabe ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionar o projeto, para que a Lei de Biossegurança entre em vigor.
?A Lei de Biossegurança abre uma gama de possibilidades para a agricultura brasileira. Haverá um campo livre para fazer pesquisas, que podem ser transformadas em produtos comerciais?, defendeu o assessor econômico da Federação da Agricultura no Estado do Paraná, Carlos Augusto Albuquerque. ?A proibição estava atrasando o desenvolvimento da tecnologia?, acrescentou.
Para Albuquerque, ainda é cedo dizer se os agricultores deverão aderir ou não às sementes transgênicas. ?Quem vai dizer isso é o mercado. Há meia dúzia de grandes exportadores que vão fazer a encomenda e dizer se querem ou não soja transgênica?, explicou. De qualquer forma, Albuquerque acredita que pelo menos no Paraná haverá muitos produtores interessados nos OGMs. ?Os produtores tinham muito receio. Ficavam aterrorizados porque o governo do Estado é contra. Agora tudo isso acabou?, afirmou.
?Prevaleceu a decisão técnico-científica em detrimento à ideológica?, apontou o presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), João de Almeida Sampaio Filho.
?O mais importante é que agora o País ganha um marco legal para os transgênicos. Os agricultores terão o definitivo acesso às vantagens da biotecnologia, produzindo com menos custos e maior produtividade. E os consumidores aos benefícios de alimentos mais saudáveis, atraentes, duráveis e baratos?, acrescentou. De acordo com o presidente da SRB, a regulamentação vai favorecer ainda a chegada de novos investimentos ao agronegócio nacional.
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) também comemorou a decisão. ?Encerra-se a discussão sobre se devemos ou não absorver uma tecnologia que garante ao Brasil melhores condições de competitividade?, disse Carlos Sperotto, vice-presidente da CNA. Sperotto lembrou que a soja geneticamente modificada resistente a herbicida é apenas um exemplo do uso de transgênicos nas lavouras. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), por exemplo, desenvolve pesquisa, entre outros cultivares, do mamão resistente a vírus da mancha anelar, do feijão resistente ao vírus do mosaico dourado e da batata resistente ao vírus Potato Virus Y (PVY).
Para o senador Osmar Dias (PDT-PR), um dos autores do projeto da Lei de Biossegurança, só no Paraná, quando se planta a soja transgênica, evita-se a aplicação de 8 milhões de litros de herbicidas no meio ambiente. ?E não há nenhum estudo científico que diga que essa soja transgênica possa trazer qualquer problema para a saúde humana. Se faz bem para o meio ambiente e não causa dano à saúde humana, a decisão de plantar deve ser do produtor?, defendeu. (Lyrian Saiki)
Ainda não existe estudo conclusivo
Para o especialista em alimentos do Idec, Murilo Diversi, ainda não está claro se alimentos com elementos geneticamente modificados fazem, ou não, mal à saúde. Também existe a questão dos impactos ambientais. ?Falta conhecimento para dizer se o transgênico é seguro ou não. E principalmente, falta imparcialidade por parte da CNTBio?, afirmou, referindo-se à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, que tem o poder deliberativo de liberar a venda de OGMs no País. ?É um órgão francamente a favor da produção de alimentos transgênicos. Isso tira a imparcialidade necessária para o conhecimento científico. Quem sofrerá com isso é o consumidor.?
Para Diversi, outro problema é a falta de cumprimento no que se refere à rotulagem obrigatória quando houver elementos geneticamente modificados acima de 1%. ?Até hoje não vi um produto sequer com essa identificação. Isso não significa, no entanto, que não haja elemento transgênico dentro dele?, alertou.
A organização não-governamental Greenpeace criticou o fato de o projeto de lei tornar facultativo o licenciamento ambiental, eliminando a obrigatoriedade da apresentação dos estudos de impacto no meio ambiente. Apontou a lei como inconstitucional, já que o Artigo 225 da Constituição Federal determina a necessidade de estudo prévio para atividades com potencial de causar impacto no meio ambiente. Para a ONG, está nas mãos de consumidores e cidadãos, exigir que seja cumprida a sua vontade e ainda que lhe seja dado o direito pleno à informação e à participação no processo.
Paraná
No Paraná, 2.613 termos de responsabilidade, ajustamento de conduta para o plantio de transgênicos foram entregues na delegacia regional do Ministério do Agricultura, o que representa 69.732 hectares. No ano passado, foram 591 documentos entregues que totalizaram 27 mil hectares. De acordo com o diretor do Departamento de Fiscalização Agropecuária (Defis), Felisberto Baptista, o governo do Estado vai continuar informando os produtores sobre as vantagens do cultivo de sementes convencionais em detrimento dos transgênicos. (LS)
Pesquisa brasileira sai ganhando
Antes de curas e tratamentos para doenças degenerativas e lesões graves, quem mais sairá ganhando com a nova Lei de Biossegurança, aprovada na noite da última quarta-feira, é a pesquisa brasileira. Quem afirma são os próprios estudiosos. ?Foi um grande passo na valorização da pesquisa no País?, declara Salmo Raskin, especialista em genética médica e um dos dez brasileiros que fazem parte do Projeto Genoma Humano.
Mesmo assim, o Paraná, lembra o médico, ainda tem muito o que evoluir na área. ?Não somos um Estado de ponta em pesquisa e não existe disposição política de se investir.? Em São Paulo, afirma, 1% do Produto Interno Bruto (PIB) é direcionado para pesquisa. ?Como se trata do Estado mais rico do País, dá para se ter idéia de quanto dinheiro é aplicado por lá?, compara.
Mas já na esteira da aprovação da nova lei de biossegurança, a doação de cordões umbilicais dos recém-nascidos passou a ser lei no Estado. A partir de agora, todas as maternidades e estabelecimentos hospitalares do Estado são obrigadas a realizar campanhas para as doações através de cartazes e contatos pessoais dos médicos com os pais das crianças.
Avanço lento
Raskin alerta para que não se crie expectativas na descoberta de curas milagrosas em pouco tempo. Ele acha que os primeiros beneficiados serão os pacientes com diabetes. ?Inserir células no pâncreas é uma coisa. No cérebro é outra história.? Porém, um fator apontado pelo especialista pode acelerar a descoberta de novos tratamentos: o retorno financeiro das indústrias farmacêuticas. ?Com a população cada vez mais envelhecida, muito se aplicará para encontrar cura para doenças geriátricas, como Parkinson ou Alzheimer.?
Quanto às doenças degenerativas graves ou lesões de medula, muito comentadas durante os debates para a aprovação da lei, Raskin avisa que as pessoas não devem esperar mudanças rapidamente. ?O que existe são apenas hipóteses, possibilidades de tratamento.? Para Waldemiro Grenski, que coordena o núcleo de pesquisas sobre células-tronco na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), levarão 5 a 10 anos de estudos para que os médicos entendam como funciona as células-tronco embrionárias. ?Elas têm grande potencialidade para regenerar tecidos, mas também têm grande potencial para se tornarem cânceres?, sentencia. ?Por isso é preciso muito cuidado.? (DD)
O projeto de Biossegurança:
– Libera a pesquisa, o cultivo, o armazenamento, a comercialização, o consumo, a importação e a exportação dos organismos geneticamente modificados.
– Cria o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), ligado à Presidência da República, que será incumbido de formular e implementar políticas para o tema.
– Com base na opinião da Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio), o CNBS terá poder deliberativo e decisório para decidir, em última instância, se uma pesquisa ou um plantio de produto transgênico é ou não degradante para o meio ambiente.
– Atualmente, os ministérios têm a prerrogativa de vetar uma decisão da CTNBio. Com a aprovação do projeto de lei, os ministérios perdem esse poder, mas têm ainda o direito de recorrer da decisão a um conselho formado por 11 ministros de Estado.
– Libera o uso de embriões humanos para pesquisas de células-tronco. Poderá ser utilizado apenas o material que estiver congelado há mais de três anos. Nesta fase, o embrião perde a capacidade de vingar no útero e, normalmente, é descartado pelas clínicas de reprodução.
O que diz o projeto de lei em relação aos transgênicos:
A proposta aprovada libera em definitivo a produção e a comercialização de soja transgênica para as sementes tolerantes ao pesticida glifosato registradas no Ministério de Agricultura.
Os alimentos que contenham ou sejam produzidos a partir de Organismo Geneticamente Modificado (OGM) ou derivados deverão conter essa informação nos rótulos.
Toda instituição que utilizar técnicas e métodos de engenharia genética ou realizar pesquisas com OGM deverá criar uma Comissão Interna de Biossegurança (CIBio) para, entre outras funções, manter registro do acompanhamento individual de cada atividade em desenvolvimento e investigar a ocorrência de acidentes e enfermidades possivelmente relacionados a esses organismos, notificando suas conclusões e providências à CTNBio.
Caberá à CTNBio estabelecer normas, critérios de avaliação e de monitoramento para pesquisas e pro-jetos relacionados a OGM; autorizar a importação desses organismos para pesquisa; emitir Certifica-do de Qualidade em Biossegurança (CQB) para o desenvolvimento de atividades com OGM e seus derivados em laboratório, instituição ou empresa; definir o nível de biossegurança a ser aplicado ao OGM; e identificar ativida-des e produtos decorrentes do uso de OGM e seus derivados potencialmente causadores de degradação do meio ambiente ou que possam causar riscos à saúde humana.
Fonte: Agência Câmara