A visão de imponentes geleiras pode levar à idéia equivocada de que a vida está (semi)permanentemente congelada nas calotas ártica e antártica. Ledo engano que se desfaz com a resposta à pergunta: ?Se o ser vivo é mais do que 3/4 de água, porque os peixes antárticos não congelam nas temperaturas subzero??. A resposta foi descoberta por uma dupla oriental da Universidade de Illinois (Chi-Hing Cheng e Liangbiao Cheng) financiado pela National Science Foundation (NSF) no início dos anos 70 e se trata de uma glicoproteína.
Este tipo de biomolécula conjuga covalentemente (união química forte) dois grupos de moléculas com propriedades químicas e fisiológicas normalmente bem distintas quando examinadas isoladamente: proteínas e carboidratos. O tal componente anticongelante, presente na circulação dos peixes, simplesmente impede que as moléculas de água transitem do estado líquido para o sólido. As potenciais aplicações vão desde sorvetes mais macios passando por proteção de plantas subtropciais contra geadas e finalizando em preservação de órgãos para transplantes.
Um outro isolado antártico de grande interesse industrial foi a levedura Candida antarctica obtida do Lago Wanda e que é fonte de duas enzimas lipolíticas, as lípases A e B, capazes, na presença de água, de hidrolisar uma série extensa de óleos e gorduras, mas as quais, na ausência de água, são capazes do trabalho reverso, ou seja, ?juntar? ácidos graxos e álcoois para produzir uma gama ainda mais imensa de novos produtos. Dois exemplos são as sínteses de furanonas que emprestam aos alimentos um sabor doce-frutado (patente japonesa) e a separação dos isômeros do Ibuprofen (analgésico, antifebril e antiinflamatório), já que apenas um deles interessa à indústria farmacêutica (patente canadense).
Uma terceira riqueza natural obtida no continente antártico e mais precisamente no sopé de um glaciar na Ilha do Rei George foi a bactéria Pseudoalteromonas antarctica NF que naturalmente excreta um exopolímero de natureza glicoprotêica contendo entre 8 a 14% de carboidrato. É o mecanismo molecular encontrado pela bactéria para resistir à intempérie ambiental e evitar o autocongelamento em função das baixíssimas temperaturas. Ocorreu à equipe dos descobridores espanhóis que tal glicoproteína pudesse ser explorada para fins cosméticos epidérmicos, o que efetivamente se deu e acabou gerando uma patente concedida em 2002. Este novo insumo ?cosmecêutico? é explorado pela empresa catalã Lipotec sob a marca registrada Antarcticine. Uma propriedade relevante dos cremes formulados à base desta glicoproteína é sua capacidade de se espalhar uniformememente sobre a pele protegendo-a de ressecamento e portanto também do enrugamento.
No caso de epiderme enrugada submetida a um tratamento por um mês, o grau de alisamento estimado por microscopia confocal foi de cerca de 40%. Em outro experimento em que se trabalhou com um modelo que simula a pele humana (camadas de queratinócitos e de fibroblastos, tecidos que biossintetizam respectivamente as proteínas mais básicas da epiderme, queratina e colágeno) a estimativa foi de que a biossíntese de colágeno do tipo I experimentou um incremento maior do que 100% mesmo na dose mais reduzida de apenas 1 nanograma de glicoproteína / mL de camada ensaiada. Um ensaio paralelo com pele reconstituída e monitoramento com electroforese indicou que uma terceira proteína de importância dérmica, a elastina, experimentou um incremento de 17%. Também foi comprovada a ação revitalizante após uma injúria dérmica simulada in vitro ou seja a capacidade cicatrizante da glicoproteína sobre a ferida provocada. A parceria biotecnológica entre uma empresa privada (Lipotec) e a academia (no caso o Departamento de Microbiologia da Faculdade de Farmácia da Universidade de Barcelona) é que viabilizou o empreendimento industrial e comercial da Antarcticine. Uma segunda patente espanhola trata da exploração da glicoproteína para a estabilização de liposomas (outra forma farmacêutica de aprisionamento de princípios bioativos em nanoglóbulos de lipídios para maior eficiência de penetração na epiderme).
Outra empresa cosmética espanhola, a Grapaderm, comercializa uma combinação de Antarcticine e de um peptídio (fragmento) da botox ou toxina botulínica (outro instrumento de alisamento de rugas).
José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR junto ao Departamento de Farmácia, pesquisador 1A do CNPq e 11.º Prêmio Paranaense em C&T.