Encontro Madame Benton no Club Ilha Brasil. Eram quase 8h30 da noite e o espaço – uma mistura de danceteria com bar, com algumas amplas cadeiras e uma grande pista de dança, tudo ao som de um fino jazz eletrônico – começa a receber um público grande para uma quinta-feira naquele horário. Ainda mais considerando que o estabelecimento, num dos pontos mais badalados da Ilha Brasil, foi inaugurado apenas em dezembro. Aliás, a própria ilha ganhou vida apenas naquele mesmo mês.
De fato, a ilha, o club, tampouco a entrevistada, existem. Ou melhor, existem apenas como simulacros na internet, dentro da comunidade virtual Second Life (SL), algo tão fantástico que nem mesmo a mente do escritor Aldous Huxley, autor de uma das maiores obras-primas da ficção científica, que empresta o nome a essa reportagem, poderia antecipar.
Madame Benton é o nome do avatar da publicitária curitibana Cristiane Seixas, de 24 anos, que há quatro meses freqüenta o Second Life. ?Mesmo que de cara pareça um jogo, é uma rede de relacionamentos muito mais abrangente do que qualquer Orkut. É possível criar uma vida paralela diferente da que a pessoa tem fora e vivê-la de verdade?, define. ?E as possibilidades de ganhar dinheiro são quase infinitas para quem aproveitar para criar algum empreendimento agora que ela está começando.?
Madame Benton é o nome do avatar de Cristiane Seixas. |
E não há exagero na definição da publicitária. O SL é tudo o que o seu nome quer dizer: uma segunda vida, que reproduz um ambiente tridimensional a ser explorado e criado pouco a pouco pelos usuários, que durante este processo interagem uns com os outros. Todo residente do SL, o avatar, como é chamado o habitante, pode comprar pedaços do jogo em forma de ilhas e ali construir casas, empresas ou paisagens, definir seu estilo de roupas, inventar objetos, viver profissional e pessoalmente (fazer negócios, namorar, fazer sexo, curtir, viajar).
No território daquele mundo feito de pixels o usuário pode imaginar toda uma nova versão sua, e, além de possuir o corpo que sempre sonhou (isto vale mesmo se a pessoa quiser ser cor-de-rosa e gigante), pode realizar coisas inimagináveis para um ser humano, como voar ou se teletransportar.
Iniciantes
Para a empreitada de escrever sobre o SL, este repórter criou um alter ego virtual: Ramon Welles. O processo de entrada na comunidade é relativamente simples. Faz-se uma conta no site www.secondlife.com, onde se escolhe um nome fictício e, se o iniciante desejar, pode escolher ser assinante Premium ou não. Nesta etapa é onde o novo residente decide se quer gastar alguns dólares do mundo real para ter direito a possuir terrenos e outros bens no mundo virtual. Para os brasileiros, é preciso ter um cartão de crédito internacional.
Ramon Welles se tornou um sem terra virtual. Mas isso não impediu que passeasse por muitos lugares sem um único Linden (moeda corrente no SL) no bolso. Porém, também passou por inconvenientes de ser barrado em alguns lugares onde era cobrada entrada, por exemplo.
Depois da inscrição, é hora de baixar a instalação do SL, do mesmo jeito que se faria como se fosse um jogo. Para tanto, o computador precisa de alguns requisitos mínimos: Pentium III de 800 MHz, memória RAM de 256 MB, placa de vídeo nVidia ou ATI, conexão de banda larga e Windows XP. Mas o melhor é Ter um Pentium IV com 512MB de RAM.
Após tudo instalado, enfim começa a personalização do seu avatar. Para isso, o recém-nascido habitante é transportado para a Ilha da Recepção, onde pode passar por tutoriais que irão mostrar como controlar seu novo ?eu?. A sensação é de estar assistindo a filmes como Um visto para o céu, que conta como os personagens vividos pelos atores Albert Brooks e Meryl Streep foram recepcionados no paraíso após morrerem, precisando aprender diversas novas regras de convivência. No SL não é permitido roubar, agredir ou discriminar o outro, para citar apenas algumas delas. ?Foi exatamente esta sensação que tive: que estava começando uma experiência em outro lugar e tinha que aprender coisas ?básicas?, como pegar objetos e voar?, conta Madame Benton.
Economia virtual que dá lucro real
Há cinco anos, o físico americano Philip Rosedale tinha apenas um escritório montado em cima de uma garagem e o sonho de construir um mundo com possibilidades ilimitadas. Hoje, tem um arquipélago do tamanho de Curitiba, que cresce 30% ao mês e que agrega cerca de 2,4 milhões de usuários.
Para montar e administrar esse mundo florescente, Rosedale fundou o Linden Lab, em São Francisco. A empresa fornece a infra-estrutura que permite aos usuários criar o que quiserem em Second Life: carros, casas, penteados malucos, roupas exóticas, florestas tropicais, cassinos, centros de conferência, estações de esqui ou foguetes. O limite é a imaginação e a habilidade para programação gráfica. Para que tudo isso funcione, atualmente nada menos do que quatro mil servidores dão vida ao SL.
Para construir uma casa ou montar um negócio, é preciso comprar terra virtual do Linden. Depois o usuário faz o que bem entender com sua propriedade: pode alugar, vender o imóvel ou cobrar pela entrada. A chinesa Anshe Chung é uma espécie de megaempreendedora dentro do SL e, se convertesse para dólares americanos tudo o que acumulou nos seus 32 meses por lá, sua fortuna ultrapassaria hoje a marca de US$ 1 milhão.
Radicada na Alemanha, An-she Chung – nome real, Ailin Graef – vem se dedicando à construção virtual de terrenos, residências e até edifícios comerciais desde que entrou no SL. Desembolsa US$ 9,95 todos os meses para ter sua conta de usuária e, hoje, já é dona de 36 quilômetros quadrados de ?terra?, dezenas de shopping centers, cadeias de lojas e produtos com sua própria marca.
Na economia do SL, os usuários fazem mais de 100 mil transações por semana e a rede movimentou em dezembro um mercado de 1,18 bilhão de Lidens, o equivalente a 4,7 milhões de dólares reais. O Linden Lab monitora as operações e pretende lançar análises desse mercado.
Diversas empresas já acordaram para o fenômeno. A BBC montou uma ilha para transmitir num telão uma série de shows que promoveu na vida real. O New Media Consortium, coalizão de 200 universidades americanas e canadenses, fundou um campus para dar aulas. O museu científico Exploratorium, de São Francisco, construiu uma réplica virtual, com exposições e até a simulação de um eclipse solar. A agência de notícias Reuters tem uma sucursal dentro do SL para cobrir apenas acontecimentos que dizem respeito à comunidade.
Versão em português já está funcionando
A versão em português do Second Life começou a funcionar no final de 2006. O País costuma figurar em 1.º ou 2.º lugar no ranking mundial de tempo de navegação: em torno de 19 horas/mês, e isso deve fazer com que os brasileiros, que já invadiram serviços como Fotolog.net, Orkut e YouTube, tornem-se uma das maiores comunidades do SL.
Antevendo o lançamento oficial, agências de publicidade também começaram a investir no consumo movido pelo novo mercado virtual. A estratégia foi adotada pelas paulistanas AgênciaClick, Ginga e DM9DDB, que inauguraram filiais virtuais atrás do crescente mercado de publicidade na rede social. A Ginga estreou no Second Life conduzindo uma campanha de marketing para a distribuidora Paris Filmes, com exibição de trailers antes na rede social do que em mídias tradicionais, como internet e salas de cinema.
O objetivo da Click com o ?novo escritório? é orientar o público brasileiro que chega ao SL para as inúmeras possibilidades desse ambiente, além de estar disponível para concretizar negócios tanto virtuais como reais, explica Abel Reis, gerente de Tecnologia e Projetos da AgênciaClick. ?Nossos clientes têm perfil ousado e, por isso, o Second Life representa uma plataforma de mídia importante para suportar suas ações de marketing interativo?, analisa Ana Maria Nubié, gerente de atendimento da agência. Já a Ginga antevê fechamentos de contratos com outras agências (reais ou virtuais) para divulgações realizadas exclusivamente dentro do Second Life.
A movimentação quase simultânea das agências tem explicação: o número de brasileiros dentro do Second Life explodiu no segundo semestre. Em apenas três meses, o Brasil pulou do 12.º país mais presente na rede para o 4.º, atrás apenas de Estados Unidos, França e Alemanha. Estima-se que 5% da população do Second Life venha do Brasil, o que daria cerca de 200 mil brasileiros atualmente na rede.
Second Life não é considerado um jogo
Um alerta para os iniciantes no SL sobre a palavra ?jogo?: não a use! Ao passear pelas ilhas da comunidade, logo se percebe que muitos dos habitantes são bem receptivos a um bate-papo informal, troca de idéias sobre algum assunto referente ao local e até mesmo para ajudar os recém-chegados. ?Basta fazer seu avatar gritar ?socorro!? que vem um monte de gente te dar dicas?, explica Diane Schnabel ou Veridiane Saldanhas, no mundo real.
Mas segundo a jovem de 20 anos, que mora em Pinhais e passa pelo menos duas horas todas as tardes como seu alter ego no SL, uma coisa á tabu: ninguém considera a comunidade como sendo um jogo. ?A impressão é que todos encaram a coisa como uma Matrix?, diz a estudante de sistemas de informação, referindo-se ao mundo virtual do filme.
Assim como Ramon Welles, Diane Schnabel é uma das milhares de avatares que não têm conta Premium, mas isso não impede a moça de arrecadar alguns Lindens. A melhor forma para fazer isso é conseguindo algum trabalho dentro do SL: existem opções desde segurança de boate até cozinheiro. Mas Diane quer juntar recurso suficiente para comprar uma moto em SL, fazendo bicos. ?É difícil conseguir trabalho se você não fala bem inglês, já que a maioria dos empregadores é gringo. Por isso, fico em campings e outras ilhas onde se paga apenas para ficar por ali, fazendo número.? A estratégia se explica: quanto mais movimentado o seu pedaço de terra, mais valorizado ele é.