Em 1760, o escritor e teólogo inglês Thomas Herbert Barker (-1837) anunciou que a cor atual de Sírius – branco-azulada – não correspondia à registrada pelo astrônomo grego Cláudio Ptolomeu no catálogo de estrelas de sua obra Almagesto, que relacionou Sírius entre outras seis estrelas designadas de hypokirros. Se bem que este nome signifique ?amarelo?, cinco das seis estrelas relacionadas eram avermelhadas, como por exemplo: Arcturus, Aldebaran, Pollux, Antares, Betelgeuse. Por outro lado, Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) escreveu: ?O vermelhão do Cão é mais quente, Marte é mais doce e Júpiter não é vermelho?. Tal comparação com Marte e Júpiter é suficiente para sugerir que Sírius possuía um índice de cor compatível com a coloração laranja ou mesmo vermelha. Por outro lado, Horácio (65-68 a.C.) escreveu: a estrela cão vermelho protege os seus filhos. A afirmativa de Horácio, baseada na posição de Sírius em relação às estrelas vizinhas, não deixa dúvidas.
Vários astrônomos aceitaram as afirmativas de Barker, dentre eles o célebre astrônomo inglês Sir John Herschel, que propôs, em 1839, uma explicação para a tonalidade vermelha de Sirius. Ele sugeriu a hipótese de que matéria opaca, sob a forma de nuvens, ao passar diante das estrelas poderia fazer variar o brilho e coloração de modo imprevisível. Segundo Herschel, ?parece mais normal que a cor vermelha de Sírius seja provocada pela interposição de um meio material do que imaginar que, em 2.000 anos, um corpo imenso tenha sofrido mudanças tão radicais em sua constituição física?. No entanto, foi o Barão Alexander Von Humboldt quem popularizou as idéias de Barker em sua obra Cosmos (1845), quando escreveu: ?Sírius é o exemplo de estrela que mudou de cor na história?.
O astrônomo T.H. Webb, em Celestial Objects for Common Telescopes (1851), escreveu que a cor de Sírius ?sem dúvida mudou, pois Sêneca a viu mais vermelha que Marte e Ptolomeu a classificou de vermelha como Antares para concluir, com base em sua experiência observacional pessoal: ?Eu a vejo como um branco intenso, com tonalidades cromáticas da safira e alguns reflexos vermelhos, provavelmente de origem atmosféricas?. Esta última observação é uma referência à cintilação estelar até hoje visível, quando observamos Sírius, próximo ao horizonte, durante uma noite agitada e úmida. Mais tarde, em 1893, por ocasião da publicação da quinta edição deste importante catálogo, o astrônomo inglês R.E. Espin introduziu a nota que Lynn, em 1887, atribuía a classificação de Sírius, como hypokirros por Ptolomeu, como um erro de transcrição.
Por outro lado, o astrônomo italiano Virginio Schiaparelli, em 1896, e o seu colega norte-americano Simon Newcomb, em 1902, não acreditavam na mudança de cor de Sírius, pois eles defendiam a teoria de evolução estelar, segundo a qual as estrelas ao se resfriarem passavam do branco ao vermelho e não do vermelho ao branco. Além do mais, Newcomb havia calculado que o intervalo de tempo necessário a tal mudança seria de ordem de dezenas de milhões de anos e não de mil anos.
Os astrônomos Paul Murdin, do Observatório Real de Greenwich, e David Malin, do Observatório Anglo-Australiano, afirmaram que esses argumentos, baseados em hipóteses ?aceitas na época?, podem ser muito perigosos, pois as teorias mudam rapidamente. Com efeito, os argumentos de Schiaparelli e Newcomb foram varridos da ciência com o surgimento da teoria de Russel, que admite a possibilidade do reaquecimento do vermelho ao branco por contração, ao longo do ramo das gigantes, no diagrama Hertzsprung-Russel, antes de se resfriar na seqüência principal. Convém lembrar que até 1969 se admitia em 100 milhões de anos o intervalo de tempo que esta transformação viesse a ocorrer. Hoje, após a descoberta que esta mudança era provocada por uma perda de neutrinos e não de fótons, aceita-se 10 milhões de anos.
Um dos maiores defensores dos argumentos de Barker foi o eminente astrônomo Thomas Jefferson Jackson See que, em 1927, publicou na revista Astronomical Nachrichten uma pesquisa histórica sobre a mudança da cor de Sírius, na qual relaciona 20 autores clássicos que sugerem tal alteração de cor. Na realidade, somente seis fazem referência à cor vermelha; os demais se referem à natureza quente e ardente de Sírius, o que pode estar associado à estação do verão que se iniciava com o aparecimento da estrela alfa do Cão Maior.
Recentemente, a idéia de Barker foi retomada por Robert Temple, em The Sirius Mystery (1976) e, em conseqüência, as discussões sobre como se poderia explicar a cor vermelha surgiram, sob um novo aspecto, nas revistas científicas internacionais. Assim, os astrônomos norte-americanos Frederick Bruhweiler, da Universidade Católica da América, Yoji Kondo, do Centro Espacial Goddar da Nasa, e Edward Sion da Universidade de Villanova, em recente artigo na revista Nature (Vol. 324, p.235) apresentaram uma nova explicação para o enigma de Sírius: o pequeno companheiro da Estrela do Cão poderia ter repentinamente expandido a sua atmosfera e se transformado numa estrela vermelha.
Se Sírius tivesse se transformado, no início de Era Cristã, em uma estrela gigante vermelha, ela estaria ainda ejetando gases que seriam detectáveis no seu espectro ultravioleta. Como nenhuma evidência de tais emissões foram registradas pelo satélite Ultravioleta Explorer International, os astrônomos norte-americanos concluíram que Sírius nem a sua companheira nem foram uma gigante vermelha em épocas recentes.
Para explicar a mudança de aparência na anã-branca Sírius B, Bruhweiler, Kondo e Sion sugerem que uma pequena quantidade de hidrogênio, existente na fina atmosfera das anãs, pode se difundir, num movimento descendente, e atingir as camadas inferiores desta atmosfera. Quando isto ocorre, a mistura de carbono e oxigênio – que constitui o núcleo da anã-branca – passa a agir como um catalisador, provocando fusão dos núcleos de hidrogênio em núcleos de hélio. Tal reação produz um aquecimento e, em conseqüência, a atmosfera de hidrogênio se expande milhares de vezes a sua dimensão primitiva. Com a expansão, a temperatura cai e, desse modo, a atmosfera reluz em vermelho. Vista do exterior, a estrela parece uma gigante vermelha. Todavia, como a atmosfera exterior dessa estrela contém muito menos matéria do que uma gigante vermelha autêntica, torna-se possível aceitar a idéia de que realmente sua atmosfera se contrai num intervalo de tempo de cerca de 250 anos. Desse modo, pode-se aceitar que a coloração vermelha de Sírius, registrada pelos antigos babilônios, gregos e romanos, tenha sido fato real.
Como este fenômeno é recorrente, na marcha em que as idéias místicas se desenvolvem em nossa civilização, não será impossível que os povos do futuro venham a fazer como os romanos, que sacrificavam os cães de pêlo rubro, durante o nascimento de Sírius, numa homenagem à Estrela do Cão, como também era conhecida na época.
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão é astrônomo, criador e primeiro diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Escreveu mais de 80 livros, entre outros, Do Universo ao Multiverso -uma nova visão do Universo. Consulte a homepage: http://www.ronaldomourao.com.