O glúten enriquecido é explorado em alguns pratos de cozinha vegetariana, dada sua capacidade de seqüestrar parte do molho, simulando o aspecto (e sabor?) de certas carnes. A farinha de trigo rica em glúten é mais indicada para pães enquanto que a pobre em glúten se presta à confecção de bolos. Parece ser a fração prolamina do glúten (gliadina no trigo) ou seja aquela rica nos aminoácidos prolina (11% a 26%) e glutamina (35% a 56%), a qual é solúvel em mistura de água e álcool e é mais resistente à ação de proteases como a pepsina (estômago) e quimotripsina (intestino), a mais implicada no desencadeamento e sustentação da doença celíaca.
A doença celíaca é uma patologia digestiva que danifica o intestino delgado e interfere com a absorção dos nutrientes a partir da comida. Os doentes são intolerantes a uma dieta protéica baseada em glúten. Celíaca deriva do grego ?koilia?, que corresponde a abdômen. É preciso ter em conta que a menção de glúten não evoca tão somente o pão nosso de cada dia, mas até adesivos de selos e envelopes e cápsulas de medicamentos e vitaminas. Quando um paciente celíaco consome comidas contendo glúten, o sistema imunológico responde com ataque à estrutura funcional do intestino delgado e destruição de suas protusões finas e digitiformes, as vilosidades, as quais são diretamente responsáveis pela absorção dos nutrientes da luz intestinal para a corrente sanguínea.
Como se trata de um dano por parte do próprio sistema imune, a doença celíaca é considerada uma enfermidade autoimune. Numa designação mais sofisticada é dita de enteropatia sensível à glúten. Tem conotação genética e membros da família tornam-se efetivamente enfermos após cirurgia, gravidez, parto, infecção viral ou até mesmo sério estresse emocional. Estima-se que 1 entre cada 250 (Itália) ou 300 (Irlanda) pessoas sofram de doença celíaca. Nos Estados Unidos a proporção desce a 1 a cada 133 e, no caso de uma ocorrência familiar, a proporção entre os parentes de 1.º grau desce para 1 a cada 22. Afeta raramente as populações negra e asiática. Não é incomum que o paciente celíaco tenha ou apresente tendência a outras enfermidades autoimunes, tais como hipotireoidismo, lupo eritematoso sistêmico, diabetes do tipo 1, artrite reumatóide e síndrome de Sjogren (infiltração das glândulas salivares e lacrimais).
Os sintomas da doença celíaca são extremamente variados. Num adulto pode aparecer diarréia e/ou dor abdominal, enquanto que numa criança pode se manifestar simplesmente a irritabilidade. Outros sinais mais comuns são: flatulência, fadiga, anemia não explicável, dor das juntas e ossos, osteoporose e osteopenia, câimbras, crescimento atrasado, descoloração dos dentes (perda de esmalte), aftas ulcerosas e dermatite herpetiforme. Esta última é uma inconveniente manifestação com erupção de bolhas que ocorre nos cotovelos, joelhos e nádegas e pode ser tratada com dapsone (diamino-difenil-sulfona), a título de simples combate de sintomas, já que a droga não é ativa sobre a doença de base.
A circunstância de amamentação no peito e prorrogação no prazo de início de alimentação com trigo e outras fontes de glúten tem um efeito claro no tempo de protelação no aparecimento da doença. O diagnóstico da doença celíaca é dificultoso e se confunde com aqueles de diverticulite, síndrome do intestino irritável, doença de Crohn e uma série de infecções intestinais. Há todavia alguns autoanticorpos que aparecem elevados na doença e que podem ser medidos na corrente sanguínea: (a) imunoglobulina A; (b) anticorpos anti-endomísio e (c) anti-transglutaminase tissular. Este último tipo de anticorpo apresenta reação cruzada contra o glúten e peptídeos derivados do mesmo.
A endoscopia e a biópsia, em função do dano morfológico e funcional no intestino delgado, confirmam com facilidade a condição de doente. As alterações patológicas do intestino delgado através do progressivo avanço da doença celíaca são classificadas conforme a escala de Marsh desde (0) mucosa normal, (1) contagem de linfócitos excedendo 20 para cada 100 enterócitos, passando por (2) proliferação das criptas de Lieberkuhn e (3) atrofia da microvilosidades até (4) hipoplasia da mucosa intestinal. É preciso ter em conta que a doença está presente entre 3% e 8% das pessoas que padecem de diabetes tipo 1 e entre 5% e 10% das pessoas que sofrem da síndrome de Down.
O único tratamento eficiente para a doença celíaca é readequar a dieta protéica e consumir apenas produtos livres de glúten, o que alivia os sintomas, cicatriza os danos intestinais e previne danos futuros, protegendo a estrutura morfológica e funcional das microvilosidades intestinais, mas uma parcela dos pacientes é incapaz de responder positivamente a esta nova dieta. Cabe ao paciente encontrar alternativas dietéticas, tais como arroz, soja, batata e milho, embora em países mais desenvolvidos existam derivados de trigo, cevada e centeio isentos de glúten. A aveia (e seu potencial glúten, a avenina) é um caso controverso de alimento: para alguns pacientes faz mal, para outros não.
A biotecnologia poderá futuramente aportar tratamentos adicionais através da produção de enzimas proteolíticas (e.g., prolil endopeptidase e cisteíno-endopeptidase) especificamente capazes de destruir a estrutura-33 do peptídio ?interno? do glúten. A doença celíaca, além das implicações aqui brevemente apontadas, gera também limitações de ordem sociológica: veda a hóstia (convencional) aos católicos e o matzo (pão não fermentado) aos judeus celebrantes da Pesach (Páscoa ou passagem). Mais democraticamente, a cerveja (cujo maior ingrediente é a cevada) é contra-indicada a todos celíacos, independentemente de etnias ou credos.
A doença celíaca tem implicações com outras patologias humanas. O rotavírus está identificado, nos USA, como a causa mais freqüente de diarréias severas em crianças e a ocorrência repetitiva desta diarréia pode provocar a evolução da doença celíaca em crianças susceptíveis, conforme relatado no American Journal of Gastroenterology, de outubro de 2006 e com base em pesquisa da Escola de Medicina da Universidade de Colorado (Aurora, USA). A confirmação da doença se dá na base de 1,94% para crianças que sofreram uma única rotavirose, cifra que sobe para 4,76% no caso de dupla ou tripla rotavirose. Outra correlação forte é a ocorrência da enfermidade celíaca em crianças que sofrem de diabetes do tipo 1. A proporção é 1 em 8. Assim, uma equipe do Odense University Hospital, na Dinamarca, identificou 33 pacientes celíacos dentre uma comunidade diabética jovem de 269 indivíduos de 4 diferentes cidades ou seja 12,3% conforme relato da revista Diabetes Care, de novembro/2006.
Outro evento grave associado à doença celíaca em adultos idosos é o debilidade de pensamento, conforme relata a revista Archives of Neurology, de outubro/2006 com base nas pesquisas da Mayo Clinic College of Medicine (USA). Os detalhes de comportamento e desempenho de idosos celíacos são: a amnésia, inabilidade para simples continhas matemáticas, confusão e mudanças de personalidade. A completa remoção de glúten da dieta implicou em melhora, mas apenas em uma parcela dos pacientes.
Curiosamente, o glúten de milho é um bom herbicida impedindo a germinação de várias gramíneas e ervas daninhas. Os aspectos clínicos, inclusive os da análise laboratorial, da doença celíaca foram abordados numa edição de 2004 do Jornal da SBAC – Sociedade Brasileira de Análises Clínicas pela Profa. Dra. Shirley Ramos da Rosa Utyama, da UFPR.
José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR junto ao Depto. de Farmácia, pesquisador do CNPq e prêmio paranaense em C&T.