A concepção de arte científica, cunhada por Hervé Fischer em La societé sur le divan (2007), é por analogia um novo conceito semelhante ao que deu origem às expressões arte expressionista, conceitual, abstrata e sociológica que surgiram com o aparecimento e avanços nas áreas da psicologia, psicanálise e sociologia. Assim como a arte impressionista surgiu dos novos conceitos sobre a teoria da óptica newtoniana aplicada à decomposição das cores. A criação da arte cientifica no fim do século passado e no início do terceiro milênio é o resultado de uma tendência que eclodiu em virtude da influência do desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente da aplicação da informática. A nova metáfora mística que se projeta na arte é a mesma daquela das ciências como a biotecnologia, engenharia genética, inteligência artificial e a cibernética que inspirou e ainda provoca um enorme impacto na mente criativa da maior parte dos artistas. Na realidade, a nova ciência com suas aplicações tecnológicas parece ser uma das aventuras que despertou um dos períodos de maior criatividade no ser humano.
Os mitos de que a arte e a ciência, além de não se misturarem entre si, estavam em completa oposição, surgiram, como uma influência de alguns iluministas, por volta do fim do século XVIII. No entanto, no passado, a arte e a ciência, ambas estavam tradicionalmente muito mais integradas entre si do que na atualidade. Um exemplo daquela época é a figura de Leonardo da Vinci (1452-1519), reconhecido como um homem da ciência, da tecnologia e da arte. Na verdade, a arte e a ciência constituíam uma das facetas do realismo. Todavia, o racionalismo iluminista, oriundo da renascença européia, transformou-se em um dispositivo mental restritivo, redutor e simplificador que implicava uma recusa à sensibilidade, à imaginação e à subjetividade, muito longe do que caracteriza a arte contemporânea. De início, a arte clássica adotou as mesmas restrições, estabelecendo parâmetros e equações geométricas entre o belo, o verdadeiro e o bem. Essa postura favoreceu as convenções artísticas em todas as suas formas, desde a pintura, escultura, música e literatura que impunham o controle da razão sobre a imaginação. No entanto, Johann Goethe (1749-1832), ao mesmo tempo poeta e naturalista, foi uma primeiras das mentes criativas e/ou inovadoras – entre os mais notáveis da sua época – que não reconheceram essa oposição entre a arte, a ciência e a tecnologia. No século XIX, com o romantismo europeu, o poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891), o escritor inglês Lewis Carroll (1832-1898) e o filósofo alemão Nietzsche (1844-1900) foram os que se lançaram em oposição ao racionalismo restaurando os valores da imaginação e do sonho, pelo menos nas artes.
Durante um longo intervalo de tempo, a ciência e a tecnologia e a arte se separam progressivamente numa posição antagônica e preconceituosa. A insurreição do dadaísmo, do surrealismo da arte abstrata associou-se em oposição a uma separação da arte e da ciência. A ciência que tinha colocado como uma posição inquestionável a importância do realismo e do racionalismo na arte, reconhecendo como a mais representativa a arte clássica, em especial com referencia à física e à biologia, ao rever a sua posição de intolerância às novas idéias, impôs um retorno dos valores da imaginação científica para enfrentar os desafios da imaginação, da incerteza, da lógica indeterminista, da descontinuidade, das leis do caos e dos sistemas em dissipação, do pensamento não linear etc. Atualmente, a arte e a ciência se reassumiram uma coexistência em vários aspectos.
Este texto é um resumo da palestra proferida pelo autor durante o Caleidoscópio – Astronomia e Arte, que aconteceu no Sesc, em Curitiba, no último 30 de maio.
Áreas distintas se inspiram mutuamente
Ainda que os métodos da ciência e da arte se oponham tradicionalmente entre si, verificamos que a maior parte dos artistas se interessa na programação computadorizada, a digitalização e a inteligência artificial como instrumento de inspiração e criação. Convém lembrar que em meados do século XX, o filosofo francês Gaston Bachelard (1884-1962), em Le nouvel esprit scientifique (1963), ao sentir o movimento renovador do espírito científico, previu essa aproximação. Poderíamos aqui falar de vários artistas-pesquisadores preocupados com a arte, a tecnologia e a ciência.
O mesmo ocorre inversamente com vários cientistas, tais como: o astrofísico francês Jean Pierre Luminet (1951-), o cosmólogo budista de origem vietnamita Trinh Xuan Thuan (1948-), assim como o biólogo belga Christian de Duve (1917-), prêmio Nobel da Medicina, que têm assumido, publicamente, essa aproximação, seja entre as atividades dos artistas e dos poetas. Por outro lado, constatamos também que a ciência se aproxima sistematicamente da visualização gráfica para representar seus objetos de estudos. Esse novo movimento artístico emerge não somente de uma relação cultural com a ciência, sobretudo humana, mas se volta para as ciências mais inovadoras e exploradoras do universo da vida. Os cientistas do início do século XX eram interessados na aplicação da psicanálise na arte surrealista; a psicologia na arte abstrata; a psiquiatria na arte dos ?doentes mentais?; a lingüística e a epistemologia na arte conceitual; a sociologia e as ciências da comunicação na arte sociológica; a etnologia nas artes primitivas.
Hoje, a maioria se volta para as ciências chamadas exatas, tais como a física quântica, as matemáticas, as linguagens programadas e os algoritmos, as pesquisas biológicas e as manipulações genéticas, as simulações e modelizações virtuais do espaço, dos objetos, a tele-presença, a nanotecnologia, a neurologia. A partir de agora, os artistas se ocupam das artes matemáticas, da bioarte, da espaçoarte ou arte espacial, da arte ambiental, da arte telemática, da arte do caos etc. A transdiversidade cultural parece conduzi-los às barreiras e as mídias emergentes das inovações técnico-científicas. Convém salientar a exigência de um maior rigor em certas formas de arte, às vezes equivalente à do mundo da ciência. Esses métodos e atitudes parecem diferentes; mas o questionamento em relação ao mundo e à vida conduzem tanto os artistas quanto os cientistas a uma mesma visão do cosmo. (RRFM)
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão é astrônomo, autor de mais de 85 livros.