Nos porões da nave N. Sra. das Candêas, capitaneada por Martim Afonso, vieram ao Brasil as primeiras mudas de Saccharum officinarum, em 1532. A capitania da Vila de São Vicente-SP foi o sítio do primeiro engenho de cana para algum açúcar de mesa e muita cachaça. Esta era também a moeda de troca que os primeiros navegantes e empresários lusitanos usavam na compra de mais escravos africanos. A cana persiste como um dos grandes agronegócios do Brasil e apenas agora, quase 5 séculos depois, é que a população negra, maior parcela do DNA nacional, se etnicamente fatiado, começa a experimentar alguma alforria real com as quotas já garantidas para estudantes universitários negros, mulatos e cafuzos, tal como acontece na UFPR.
Engajados no tema desde os anos 80s, hidrolisando bagaço de cana com ácido fosfórico (patente INPI 0002001-0; com mandioca) para obter mais etanol além daquele do caldo da mesma cana, apelamos agora para a competência da ALCOPAR (Associação de Produtores de Álcool e Açúcar do Estado do PR) para arrebanhar dados de atualização e, histórico com tal; do presidente Anísio Tormena chegamos a Paulo Adalberto Zanetti. Este é um paranaense que veio à luz em Rolândia, graduou-se como agrônomo em Bandeirantes, internalizou-se nas usinas Meneghel, implantou o negocio canavieiro da COROL, mescla-se com o berço da própria ALCOPAR e comanda, hoje, a Vale do Ivaí, em São Pedro do Ivaí, usina premiada em 2004, satisfeitos, no comparativo com todas as centenas de outras usinas brasileiras, os critérios rigorosos de produtividade, tonelagem açucareira /ha e alogamento de vida útil de canavial. Ali produtividade alcançou a marca record (média) de 104 t cana/ha (SP, em mais modestos 87/ha!) mais a proeza de 9 (NOVE !) cortes por plantio, sepultando o idéia do velho limite de 3 ou 4. Zanetti tanto aprendeu e muito mais ainda ensina. Define o negócio da cana como apaixonante. Damos o contraponto: contagiante. Açúcar, álcool e bagaço; doce, euforizante, ardente.
Colheu-se na safra corrente brasileira (ano-safra 2003/2004 posto que do plantio 2003 à comercialização de 2004 fica de permeio o Ano Novo) 351 milhões de toneladas de cana. O Brasil é campeão mundial nela e no que dela se extrai. Os subprodutos diretos: 24,2 milhões de toneladas de açúcar mais 14,5 bilhões de litros de etanol , 60% como álcool anidro (99,9o GL) e 40% como hidratado (93,3o GL). SP é o carro-chefe com 65% deste agronegócio mas o PR (vice-líder) é um vagão de luxo por uma série de fatores, além da contribuição com 28,5 milhões de t de cana, 1,83 milhão de t de açúcar e 1,22 bilhão de litros de etanol. Disso se encarregam suas 27 usinas (formando o arco da figura, todos acima do paralelo 24) das quais 23 associadas à ALCOPAR e 10 estruturadas como cooperativas de cana e álcool ou mesmo mistas, envolvendo pois outros negócios do campo. No País o setor sucro-alcooleiro mantém 1,2 milhão de empregos diretos mais 4 milhões de indiretos. No PR as respectivas cifras são 74.000 e 320.000. Em 2003, apetite industrial e combustível de outros países arrebanharam (Rússia na cabeça), além de 13,3 milhões de t de açúcar, 800 milhões de litros de etanol da produção nacional.
China e Japão se achegando ao calor energético brasileiro, as exportações de 2004 (já contratadas) sobem para 1,3 bilhão de litros mas podem, pelos mecanismos intrigantes da oferta e demanda, dobrar em relação a 2003. No PR os preços praticados em prol dos fornecedores de cana oscilaram, ano passado, entre R$ 28 a 36/t. As usinas entregaram açúcar a R$ 26/saca de 50 kg e o álcool, se hidratado, a R$ 0,60 a 0,62/litro e se anidro, a R$ 0,65 a 0,67 (média de preços). Como o etanol (anidro) tem densidade = 0,789 g/l, 1 kg de etanol corresponde a 1,27 l ou R$ 0,97. Se isonomicamente comparado com 1 kg de açúcar (25/ 50), R$ 0,50, facilmente se entende que o usineiro é presa permanente, além dos acenos negociais externos e algum controle do governo, de um magnetismo pró-álcool considerável. Mais álcool, menos açúcar, pois é do 2.º que se faz o 1.º. Mas para se obter açúcar basta cristalizar a sacarose do caldo de cana que contém uma média de 20% de açúcares. Sobra daí ainda o melaço. Para o etanol, já há todo um procedimento fermentativo industrial que culmina com a destilação (eliminação da água). Melaço, hoje, já não engorda mais as vacas belgas: vai, quase que integralmente, para reforçar a fermentação alcoólica. Um balanço de opções primoroso. De levedura (40% de proteína de alta qualidade composicional e digerível), de bagaço (eficiente co-gerador de energia autonomizante para a usina) e de outros bionegócios atados falaremos num 2.º artigo, ali destacando também um papel preponderante desempenhado pela UFPR, cuja sede está bem abaixo do paralelo 24.
Centremo-nos por ora no diferencial paranaense em relação aos demais estados sucro-alcooleiros (SP, AL, MG, PE, MT, em destaque) a partir da rica retrospectiva garimpada junto ao culto interlocutor das margens do Rio Ivaí :
a) prática organizacional, traduzida num histórico construído pari passu com o PROALCOOL, a partir de 1980, e um parque industrial evoluindo de 4 para 27 unidades e cultivando a integração interunidades e um espírito efetivamente coletivo de negócios. A ALCOPAR centra a representação institucional da rede, conduz a macropolítica, organiza cursos e busca novas oportunidades no bojo de projetos especiais. Emparceirados a ela, dois sindicatos dividem os dois maiores ramos do negócio, o SIALPAR no álcool e o SIAPAR, no açúcar. Co-administram as relações do capital e trabalho.
b) logística privilegiada no segmento de transporte dada a ferrovia adjacente ao eixo geográfico das usinas do Norte paranaense e também na estocagem e centrais de transporte, além de um marco redutor de custos (componente FOB de exportação reduzido de US$ 17 para 8/t) por conta do terminal de exportação para sólidos (açúcar) em Paranaguá. Teve custo de infra-estruturação de uns R$ 20 milhões (2002) ora valorizado para o quádruplo. Investimento integralmente privado feito no solo portuário parnanguara (público) vencida a etapa de legitimidade conferida pelo processo licitatório. Novo desafio: o terminal portuário para líquidos (etanol), em andamento, seguindo a mesma e acertada estratégia. É o PR dois anos à frente da esfera federal, a qual firma ainda os primeiros passos com o decreto de criação da PPP (Parceria Público-Privada), tramitando no Congresso Nacional.
c) P, D & I (Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação), no manejo da lavoura, adoção vantajosa de novas variedades (cultivares) (aguardar em próximo artigo casado, o 2.º, a inserção da UFPR exemplificada com os professores Daros, Zambon e o casal Canziani). Ousadia e avanço no front de aplicação de produtos seja com readequação combustível do diesel mediante inclusão de álcool seja com a mistura ternária diesel-etanol-biodiesel, a MAD, inovadora no País e mesmo no exterior, nas parcerias com a URBS e transportadoras filiadas e o TECPAR.
d) permanente interação com o aparato de Estado, profissional, madura e suprapartidária, co-cultivando ganhos políticos e materiais para um PR coletivo, seqüencialmente nos governos Dias, Requião (2) e Lerner. Esta postura cidadã permitiu sucessivamente que o PR despontasse como pioneiro (1992-1993) consolidando, mediante lei estadual, o etanol como sucedâneo do poluidor chumbo tetraetila na gasolina a título de incrementador de octanagem beneficamente oxigenado (avanço logo a seguir encampado como lei federal), seguido (1996) por nova vitória político-econômica, mantendo o etanol, aqui produzido, ao invés do MTBE (metil-ter-butil-éter; do petróleo; exclusividade da PETROBRAS) como co-combustível de adição. Éter este ora banido nos EUA dado o risco de contaminação dos lençóis freáticos. Nova lei paranaense pioneira, seguida de igual legislação federal. A atual coalizão de governadores pró-etanol é o fato relevante do final de 2003. Requião, apoiado na ALCOPAR, lidera a iniciativa compartilhada nacionalmente.
Seguiremos com o tema; edulcorante, embriagador, ardente sob um enfoque mais estreito em C&T&I, pois é uma das mais belas manchas desta “onça-pintada” chamada Paraná, resultado de um solo rico, rede fluvial generosa, pluviometria abençoada e sobretudo um harmonioso caldeamento de muitas raças e credos.
José Domingos Fontana
(jfontana@ufpr.br) é pesquisador 1-A do CNPq, 11.º Prêmio Paranaense em C&T (1996) e fundador do LQBB ? Laboratório de Quimio/Biotecnologia de Biomassa (1982) na UFPR. Pesquisador e Orientador nas Pós-Graduações de Ciências Farmacêuticas e Bioquímica/Biologia Molecular-UFPR.