Café, um estimulante histórico e da moda

Pela primeira vez e rompendo a tradição e fleuma britânicas, o consumo de café no Reino Unido ultrapassou aquele do histórico chá que é ainda consumido na base de 165 milhões de xícaras/dia. Café (Coffea arabica e C. canephora ou robusta) é uma rubiácea em que o Brasil é campeão mundial de produção, com 33 milhões de sacas / ano-colheita (24 milhões de arabica e 9 milhões de robusta), seguido pela Colômbia e Vietnam.

Chá (Camellia chinensis), uma teácea, tem sua origem e ainda o maior bolsão de produção em países asiáticos como a Índia, China, Sri Lanka e Indonésia, além do Quênia, na África. Segundo a Starbucks, maior multinacional atuando no negócio do café e bebidas derivadas, o café é oriundo do Chifre da África (zona que corresponde à Etiópia), mas a bebida derivada de grãos torrados teve origem na Península Arábica no século XI. Os peregrinos que visitavam Meca e outras cidades santas se encarregaram de espalhar a planta mundo afora. No século XVII os franceses introduziram o café na Martinica. Em decorrência das pragas dizimatórias na Indonésia, onde o agronegócio era explorado pelos holandeses, o Brasil, a partir de meados do século XIX, tornou-se o líder mundial de produção. Aliás, a receita da própria Starbucks para um café perfeito é 180 mL de água recém-fervida (entre 90.ºC e 96.ºC) para cada 10 g de pó, para se garantir o máximo de odor e sabor (flavour). E a torrefação prévia deve se situar entre 11 e 15 minutos, ou seja, quando o grão, já amarronado, começa a verter o óleo.

Café, chá (e também o cacau, Theobroma cacao) têm em comum a ocorrência de pseudopurinas ou xantinas metiladas nos frutos e folhas em proporções variadas: cafeína (dominante no café), teofilina (chá; atividade broncondilatora no tratamento sintomático de asma) e teobromina (cacau). Estas três xantinas são aceitas na literatura como estimulantes do sistema nervoso central (SNC) e daí, o progressivo sucesso que vem alcançando o guaraná (Paullinia cupana), uma outra fonte botânica essencialmente amazônica e cujo conteúdo de cafeína nos frutos é o mais alto (4 a 8%).

Células do cérebro (e de outras partes do corpo) têm receptores para adenosina (um dos 4 nucleosídios que compõem o ácido ribonucleico). Ligada às células nervosas, a adenosina reduz a atividade deste tipo de células (por exemplo, durante o sono). A cafeína, dispondo do mesmo anel nitrogenado que a adenosina, também pode se ligar ao mesmo receptor celular para a segunda, mas provoca um efeito reverso (inibidor), anulando aqueles da adenosina. O resultado é maior liberação do hormônio adrenalina, maior batimento cardíaco, aumento da pressão sanguínea e do fluxo de sangue aos músculos, diminuindo-o para a pele e órgãos internos.

Paralelamente, a cafeína, tal qual uma anfetamina, aumenta os níveis do neurotransmissor dopamina no cérebro. Diferentemente do álcool, o efeito da cafeína no SNC é rápido, decretando um estado de alerta e resistência à fadiga. Doses elevadas de cafeína causam estremecimento muscular, equívocos de pensamento e linguagem, arritmia cardíaca e agitação psicomotora. A dose letal mediana (DL50) para humanos se situa entre 150 e 200 mg/kg de peso (o equivalente a cerca de 150 chícaras de café!), mas intravenosamente, 3,2 g de cafeína pura matam um adulto. Cavalos, cães e papagaios são muito mais sensíveis que o homem.

As bebidas de café, chá e refrigerantes tipo ?cola? contêm respectivamente 526 a 605, 263 e 33 a 212 miligramas de cafeína / litro. A cafeína atinge o pico plasmático em 60-90 minutos após a ingestão e ali persiste entre 2,5 e 4,5 horas, dependendo do metabolismo de cada pessoa.

Num estudo conduzido na Suécia (Agardh, E.E. et al., J. Intern. Méd. (2004) 255, 645-652) se concluiu que o consumo elevado de café reduz o risco de diabetes do tipo 2 e de desequilíbrio na tolerância à glucose em homens e mulheres, possivelmente devido a sensibilidade melhorada à insulina. Noutro ensaio levado a cabo na Itália (Daglia, M. et al., J Agric Food Chem., (2004) 52(6), 1700-1704) se comprovou que o ácido clorogênico, seja em café verde ou tostado, exibe importante bioatividade para o combate de radicais livres (agentes de envelhecimento e morte celular). A pesquisa de Carla Pruzzo (Universidade de Ancona, Itália) tem comprovado que alguns componentes do café (ácido clorogênico, ácido nicotínico e trigonelina) impedem o estágio inicial de instalação da cárie impedindo a bactéria cariogênica Streptococcus mutans de aderir ao dente. O achado é confirmado por Wil-liam Bowen, da Escola de Medicina e Odontologia da Universidade de Rochester, no Estado de Nova York. Talvez por esta e por outras, uma saca de café de 60 kg alcança preço de R$ 260,00 no mercado interno brasileiro.

Uma variante clássica para servir o café é o ?expresso?, que consiste na extração a quente e sob pressão. A invenção da máquina moderna para tal é atribuída ao italiano Achilles Gaggia em 1946. Nestas condições, a bebida forma uma camada flutuante espumosa dita como ?crema?. Na concepção italiana, este preparo envolve uma certa arte e o mestre é chamado de ?barista?. Como a bebida do café envolve uma complexa mistura de bioativos (inclusive o ácido fenol-carboxílico clorogênico antes mencionado) e, algumas pessoas têm restrição metabólica ou opcional à cafeína, o café pode ser previamente descafeinado mediante três diferentes métodos: a) extração a quente seguida de filtração por carvão ativo para remover a cafeína; b) pré-extração da cafeína com solventes orgânicos como o acetato de etila; e c) pré-extração supercrítica (com um corrente de gás carbônico acima de 32.ºC e 73 atmosferas de pressão ou 1.070 psi), que é um método mais caro mas também mais seletivo.

Para obviar o trabalho caseiro ou comercial de preparação a partir do pó de café integral (que tem vida curta se não acondicionado sob nitrogênio ou sob vácuo), o café solúvel foi inventado pelo químico nipoamericano Satori Sato, em Chicago, em 1906. O escalonamento industrial se deu a partir de 1909 pelo químico inglês George Constant Washington. A outra versão, a partir de liofilização (?freeze-drying?) surgiu apenas em 1938 e sob a marca Nescafé.

Embora o café esteja desde longa data incluído no agronegócio brasileiro, o cultivo requer cuidados especiais em função da diversidade de pragas que acometem esta lavoura: ácaro, bicho mineiro, broca, cigarras, cochonilha, lagarta, mosca-do-café e nematóides (raízes). No Estado do Paraná o trabalho industrial pioneiro em café solúvel foi consolidado pela Cia. Cacique de Londrina, a qual mais recentemente aprimorou o processo industrial utilizando toda borra de café (50 toneladas/dia) para a queima e co-geração de energia. Com isto o gasto anual de cerca de 1 milhão de reais com derivados do petróleo caiu para apenas 200 mil reais.

José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR junto ao Departamento de Farmácia, Pesquisador 1A do CNPq e 11.º Prêmio Paranaense em C&T.

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