A estimativa é que entre 20% e 25% da riqueza genômica (vegetal e animal) do planeta se concentre no território brasileiro. Isto equivale a 55.000 espécies vegetais, 524 mamíferos, 517 anfíbios, 1.622 aves, 468 répteis, 3.000 espécies de peixes de água doce e cerca de 15 milhões de insetos. Os olhos do mundo, calçados nas lentes da biopirataria, estão postos nestes formidáveis capital e poupança biológicos.
Tão somente no livro Plantas Medicinais da Amazônia e Mata Atlântica de L.C. Di Stasi e de C.A. Hiruma (editora Unesp) foram catalogadas 135 espécies medicinais citadas por 110 moradores da Amazônia e 170 da Mata Atlântica. A descoberta dessa riqueza, ainda pouco desvendada, iniciou com o trabalho do farmacêutico Theodoro Peckolt que desembarcou no Brasil por orientação do renomado médico e botânico Carl Friedrich Von Martius e quem já em 1874, assentando as primeiras bases de uma química de produtos naturais brasileira, isolou um primeiro alcalóide iridóide a partir da planta apocinácea Plumeria lancifolia e que ele denominou agoniadina, hoje, plumerídio.
Chama a atenção na mídia, a oferta do heptapeptídio Deltorphin ou Dermencephalin por parte da Phoenix Pharmaceuticals, Inc. (EUA) por US$ 50 cada meio miligrama (1 mg é a milésima parte de um grama). É obtido da secreção de glândulas da pele da perereca Phylomedusa sauvagei, cujo gênero é comum na Amazônia. A potentíssima atividade biológica frente a receptores para opiáceos (*) tem a ver com a seqüência em que os L-aminoácidos estão dispostos na cadeia deste peptídio e a circunstância especial de que o penúltimo deles (metionina) é um isômero D. Este é um formidável desafio para os bioquímicos e biólogos moleculares já que o RNAm que ?orienta? a biossíntese do peptídio traz um códon que é especifico para a incorporação de L-Metionina em analogia aos oligopeptídios que trazem na penúltima posição o aminoácido D-Alanina (ao invés de L-Alanina). Logo, depois do peptídio ser traduzido (RNAm -: proteína) nos ribossomas, ocorre uma modificação post-translacional que converte um aminoácido da série ?L? no respectivo isômero da série ?D? (um par isomérico L / D é como a imagem especular de um objeto defronte a um espelho; há semelhanças mas as estruturas não são sobreponíveis). O que a moderna farmacologia está oferecendo trata-se da mesma ?vacina de sapo? ou kambô de longa data conhecida e manipulada pelos índios katukina (Acre) que a aplicam para corrigir a ?panema? ou estado de espírito negativo que favorece as doenças. Todavia, o uso do kambô está proibido pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) não obstante dezenas de pedidos de patente assinados por laboratórios estrangeiros.
Uma outra espécie de perereca (P. distincta) forneceu uma mistura de peptídios tendo entre 25 e 33 resíduos de aminoácidos. Provaram forte atividade antimicrobiana contra bactérias Gram positivas (Staphylococcus, Enterococcus) e negativas (Escherichia e Pseudomonas) na faixa de 0,6 a 40 micromoles / litro. Da pele desta mesma ranzinha C.V. F. Batista e C. Block Jr ainda isolaram a distinctina, um peptídio heterodimérico em que as cadeias individuais são ligadas por uma ponte dissulfeto e dotado, igualmente como os demais, de alta bioatividade antimicrobiana.
Da pele de outra espécie de perereca, P. rhodei, se extraiu outro heptapeptídio, valina-(prolina)2-leucina-glicina-triptofano-metionina, com forte efeito sedativo e hipnótico sobre o SNC – Sistema Nervoso Central. Um variante menor, um tetrapeptídio, glutâmico-prolina-triptofano-metionina, provocou, em ratos, aumento da síntese protéica e aumento do peso corporal mesmo com injeções limitadas de 10 a 100 nanogramas / kg de peso. É portanto muito variada a bioatividade das dezenas senão centenas de minipeptídios isolados das glândulas secretoras da pele de anfíbios do gênero Phylomedusa. Assim, a parceria Embrapa – Laboratório Sabin, UnB e USP, isolou da perereca dos Cerrados (P. oreades), o peptídio dermaseptina também ativo contra muitas bactérias patogênicas, inclusive a MRSa, Staphyloccoccus aureus meticilina-resistente. O mesmo composto se revelou superativo contra as formas tripomastigota e epimastigota de Trypanosoma cruzi (protozoário causador da doença de Chagas) quando numa concentração baixa (6 micromolar) em 2 horas causou a lise (?desmanche?) dos protozoários. Importante ressaltar que nestes ensaio in vitro as hemácias humanas não sofreram qualquer alteração detectável o mesmo se aplicando às células brancas e plaquetas. Estes excelentes resultados foram confirmados pela parceria entre a UFGO (Goiás) e a UnB (Brasília) onde, dentre os 9 peptídios isolados da pele de P. tarsius, 3 também se revelaram potentes ferramentas líticas para Trypanosoma.
O caso da exploração dos peptídios bioativos de Phylomedusa é altamente ilustrativo de quanto a fauna (e flora) brasileira guarda de riquezas biotecnológicas ainda inexploradas. É por esta razão que qualquer mente minimamente esclarecida deve se ensandecer com as imagens das irracionais queimadas amazônicas que a tão poucos madereiros beneficiam em detrimento de todos.
(*) Receptores opiáceos compõem uma família inicialmente deslindada através da ação analgésica de um componente do ópio, a morfina.
José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito na UFPR junto ao Departamento. de Farmácia, pesquisador 1A do CNPq e 11.º Prêmio Paranaense em C&T.
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