Não há imagem mais desanimadora para o apetite por um bom bife do que uma vaca babando. Que o digam as dezenas de países que acabam de suspender a importação de carne bovina brasileira por conta do novo surto de febre aftosa que surgiu em Eldorado, Mato Grosso do Sul, a poucos quilômetros da fronteira com o Paraná e com visíveis sinais de irradiação para outras unidades da federação por conta de feiras e exposições.
A doença é causada por um grupo de 7 sorotipos do virus do tipo picornavirus (família Picornaviridae, gênero Aphthovírus. de reduzidas dimensões) classificados em A, O, C, SAT-1, SAT-2, SAT-3 e Ásia-1, os três primeiros típicos da América do Sul, transmitidos pelo ar (o aerosol com vírus pode alcançar mais de 60 km de distância), pela água e pelos alimentos. A doença já era conhecido na Itália desde o século XVI. O genoma viral consiste de uma molécula de RNA de cadeia simples com aproximadamente 8 kilobases. O vírus não tem envelope, mede 27 nanômetros de diâmetro e apresenta simetria icosaédrica (poliedro de 20 fases). Na microscopia eletrônica as partículas virais apresentam-se lisas e circulares. O período de incubação varia de 2 a 8 dias e as vítimas são os animais herbívoros ditos biungulados (cascos bipartidos) ou seja bovinos, ovinos, caprinos e suínos, sem distinção de idade, sexo ou sazonalidade. Os órgãos mais afetados são a língua e boca (e daí a extrema salivação), cascos e úbere. Além da baba, aftas linguais, labiais e gengivais, além da febre, são claros indícios da doença. Há grande facilidade de contágio, sobretudo no estágio inicial quando a carga viral no sangue é mais elevada. As vesículas da língua e dos tecidos moles em torno do casco se rompem e liberam o vírus em todo trajeto de circulação do animal infectado. O vírus apresenta notável longevidade nas carcaças, na medula óssea, couro, farinha de ossos e mesmo no pasto, feno enfardado e forragem ensilada. A vaca afetada é renitente em amamentar a cria (inflamação e dor no úbere). Nos rebanhos afetados a perda comercial (leite, carne) é estimada em cerca de 25%, quando não total, em função da exigência do sacrifício. Inapetência, perda de peso, infertilidade, maior susceptibilidade a outras doenças e aborto são conseqüências diretas da febre aftosa. O animal infectado apresenta duas famílias de anticorpos : 1) contra a cobertura protéica do vírus e 2) contra outras proteínas ditas ?não estruturais? . Assim, um animal vacinado tem anticorpos tão somente contra as proteínas estruturais e a disponibilidade de um kit diagnóstico direcionado apenas contra a 2.ª população é do maior interesse para distinguir os animais doentes daqueles (eficazmente) vacinados. Tal feito foi levado a cabo na Argentina pelo Cevan – Centro de Virologia Animal e subordinado ao Conicet (?CNPq argentino?). Tal instrumento permitiu uma varredura epidemiológica que contemplou tanto a eficácia de proteção ao rebanho quanto a taxa de circulação viral (repasse do vírus de um animal a outro). A febre aftosa deve ser objeto de compulsória prevenção através da vacinação bianual. A vacina deve ser preservada sob refrigeração (entre 2 e 6ºC, evitando congelamento), aplicada sob a pele evitando agulhas grossas (perda pelo orifício de perfuração do couro) e o eventual aparecimento da doença entre 14 e 21 dias da aplicação é indicação de que o animal já estava contaminado com o vírus da aftosa mas sem manifestação de sintomas. Dentre as medidas coadjuvantes estão a desinfecção de estábulos com mistura de soda cáustica e cal de caiação, o uso de pedilúvio na entrada de currais fervura do leite destinado à alimentação humana e tratamento das feridas de cascos, boca e tetas dos animais afetados, quando não sua eliminação por enterro em fossas profundas no próprio território de origem da doença.
Segundo o Mapa – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o rebanho bovino brasileiro em 2004 era de 191 milhões de cabeças. Em 2004, o agronegócio brasileiro exportou US$ 39 bilhões, sendo US$ 6,2 bilhões em carnes das quais US$ 2,5 bilhões somente com carne bovina. Para 2005 se esperava um crescimento de no mínimo 10% nestas cifras. Com o desastre gerado a partir de Eldorado é difícil de se estimar as perdas em função de que não se sabe quanto perdurará o bloqueio de importação por parte da Europa e Ásia nem se vai se sustentar a inclusão dos Estados vizinhos (SP e PR) em tal proibição. De qualquer forma uma delegação de técnicos europeus recentemente visitou o Brasil para conhecer o cumprimento de uma exigência por eles mesmo proposta : o Sisbov – Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina, em vigor desde abril de 2005 e que contempla, dentre outras metas, a rastreabilidade de todos animais a partir dos 40 dias de idade. A partir de 31 de dezembro de 2005, todos animais oriundos de zonas declaradas livres de incidência de febre aftosa, serão obrigatoriamente cadastrados e rastreados.
José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR junto ao Depto. de Farmácia, pesquisador 1.ª do CNPq e 11.º prêmio paranaense em C&T.
