A meridiana da igreja de Saint-Sulpice, Paris, foi ignorada por quase todos os freqüentadores deste tempo católico, assim como pelos turistas que o visitavam aos domingos, em especial durante as missas das 11h e 12h da manhã, para escutar o som do seu órgão, até o dia em que o escritor Dan Brown, em O Código Da Vinci, sugeriu que o traçado metálico – a famosa linha rosa – que atravessa o chão do átrio da igreja seja os vestígios de um templo romano. O prolongamento da linha rosa indicaria a posição do obelisco, em cuja base a irmandade secreta do priorado havia escondido a pedra-chave que permitiria localizar o Santo Graal.
Na realidade, o que existe neste templo é o traçado em latão de uma meridiana de grande precisão que permitia medir o deslocamento do Sol no céu. Esta linha de cobre incrustada no piso da igreja de Saint-Sulpice, começa no transsepto sul deslocando-se por de trás da balaustrada do coro para se projetar num obelisco situado no lado oposto.
Seu princípio é simples: um orifício perfurado no lado meridional no teto ou na parede, ou, como em Saint-Sulpice, num vitrô, deixa passar os raios solares de modo que seja possível acompanhar o trajeto do Sol ao longo do ano, ao meio dia quando ao atravessar o meridiano celeste, os raios solares se projetem sobre a linha metálica orientada do sul para o norte. Como o Sol não se apresenta na mesma altura no céu, ao longo dos meses, o disco luminoso projetado no chão atravessava a régua (linha da rosa) nos solstícios de inverno e no de verão respectivamente em dezembro e em junho.
A existência dessas meridianas instaladas nas igrejas tinha por finalidade transformá-las em um verdadeiro observatório astronômico. Esses instrumentos astronômicos -as meridianas – foram concebidos para acompanhar a trajetória do Sol e deste modo calcular a data da Páscoa.
A meridiana de Saint-Sulpice foi concebida pelo astrônomo Charles Le Monnier. Na verdade, não se trata de nenhum dispositivo de origem romana como quer o escritor Dan Brown.
A sugestão para construir essa meridiana foi de Jean-Baptiste-Joseph Languet, cura da igreja de Saint-Sulpice, quando este templo a começou a ser ampliado no início do século XVIII. Com efeito, em 1727, o relojoeiro francês Henri de Sully começou a elaborar um relógio solar cuja finalidade era regular os relógios públicos da cidade. Infelizmente, ele morreu antes de concluir a sua obra. Em 1743, Languet solicitou ao astrônomo francês Charles Le Monnier (1715-1799) que retomasse o trabalho de Sully. No entanto, além de sugerir uma nova meridiana a 45 cm a oeste da anterior, o novo astrônomo, a quem o cura confiou a execução, possuía outras ambições astronômicas mais avançadas; queria aproveitar para observar, ou melhor, determinar a obliqüidade da eclíptica. Com o objetivo de obter uma imagem mais nítida do Sol projetada no assoalho, alinhou a meridiana de latão com um obelisco colocado no interior da igreja, de modo que a imagem do Sol no inverno pudesse ser menos distorcida. Na realidade, a imagem ao se projetar sempre sobre a linha meridiana no meio dia solar, passava por diferentes pontos da linha ao longo do ano.
No verão, quando o Sol se encontrava mais alto, a imagem projeta-se no assoalho mais próxima do orifício, situado no bordo do vitrô a 25,98 metros de altura do lado sul, ou seja, à direita de quem entra pela porta principal da igreja.
Um segundo orifício foi colocado mais baixo no vitrô impedindo que o raio de luz passasse vários dias antes e depois do solstício de verão.
Como a igreja é relativamente estreita, a projeção do Sol ocorre na parte interna do lado oposto, na parede norte interna. No extremo norte da linha de latão, o astrônomo francês colocou uma marca do solstício de inverno no obelisco e, na extremidade sul, a marca do solstício de verão no assoalho.
No inverno, quando o Sol está no hemisfério sul, portanto, mais baixo no céu, a imagem solar se projeta mais distante do lado oposto, na parede norte, ou seja, do lado esquerdo de quem penetra na igreja. No solstício de inverno, o Sol alcança a vertical ao longo do obelisco, atingindo o símbolo do Capricórnio no dia 21 de dezembro. Neste caso, a imagem solar se projetava mais alongada e distorcida. Para evitar esta deformação causada pelo fato da igreja não ser suficientemente larga, Le Monnier projetou e construiu um obelisco no alinhamento da meridiana, conseguindo deste modo reduzir a distorção, fazendo com que o ângulo do Sol onde estava a meridiana diminuísse.
Nos pontos intermediários registrou as posições que a projeção do Sol marcam os equinócios da primavera (em 21 de março) e do outono (em 23 de setembro).
De acordo com Le Monnier, este relógio do Sol podia alcançar uma precisão de 1/4 de segundo ao determinar o meio-dia solar. Na realidade, as metas do matemático eram ainda mais ambiciosas. Além de estudar a mudança da direção dos raios solares provocados pela atmosfera – a denominada refração -, Le Monnier queria também estudar os momentos em que a órbita da Terra passava mais perto ou mais longe do Sol, respectivamente no periélio e afélio.
Para a maior parte dos freqüentadores dessa igreja, a existência de um tal instrumento numa igreja, além de constituir um fato novo, assumiu no relato de Dan Brown uma atração turística. Desde o seu sucesso como best-seller, às visitas a esse edifício religioso se tornaram freqüentes.
A maior parte dos católicos desconhecia até então que as igrejas eram geralmente orientadas ou melhor, construídas sob o eixo leste-oeste, com o Sol se elevando do lado do altar, simbolizando a esperança e a ressurreição e se pondo de lado oposto sobre o portal oeste, geralmente decorado com cenas do Julgamento Final. Os pensadores da Idade Média escreveram páginas extremamente interessantes sobre o simbolismo arquitetural dos templos católicos. Trata-se em geral de concepções teológicas e não de astronomia. Freqüentemente, em virtude das disposições dos terrenos, a orientação dos edifícios era aproximada. No entanto, a meridiana como um instrumento científico de observação do céu deveria seguir uma orientação mais precisa. Desse modo, a igreja funcionava como enorme relógio solar através do qual se podia acertar diariamente os relógios mecânicos. Construir a meridiana que tinha como objetivo marcar a hora solar exata de forma que os rituais da igreja ocorressem nos momentos convenientes às celebrações.
Ao contrário do que diz Dan Brown, a linha meridiana da igreja não é um gnomo (designação reservada a um ponto ou haste de projeta a sombra do Sol no mostrador do relógio solar). No caso da igreja de Saint-Sulpice, pode-se considerar o orifício no teto como um gnomo. O nome de linha da rosa atribuída por Dan Brown à linha meridiana de Saint-Sulpice é uma ficção do autor. Ao contrário do que afirma, a meridiana dessa igreja nunca serviu para marcar o meridiano de referência de Paris ou a longitude zero usada de 1669 a 1884 pelos marinheiros e cartógrafos franceses que passavam a leste pelo meridiano de Paris.
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão é astrônomo, criador e primeiro diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Escreveu mais de 80 livros, entre outros, ?Do Universo ao Multiverso -uma nova visão do Universo?. Consulte a homepage: http://www.ronaldomourao.com.