Explorados!

Foto: Arquivo

A rotina exaustiva começa cedo e não tem hora pra acabar. Quinze, dezesseis, dezoito horas seguidas, só com uma fatia de pão seco e uma xícara de café fraco no estômago. No serviço, condições degradantes às quais nenhum trabalhador pode ser submetido. No corpo, os sinais da crueldade e na alma, as marcas da exploração. Essa é a realidade de milhares de vítimas do trabalho análogo ao escravo. Um crime que se espalha pelo Brasil.

Segundo dados divulgados na última semana pela Procuradoria Geral da República (PGR), o Paraná ocupa o sétimo lugar na lista de estados brasileiros onde mais ocorrem situações envolvendo a exploração de trabalhadores. No ano passado, quatro novos casos foram denunciados no estado. Uma raridade. Já que por medo, muitas vítimas escolhem o silêncio e, impunes, os criminosos continuam agindo travestidos de “bom empregador”.

Conforme dados levantados pelo Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, só no ano passado, 315 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão no país. Destes, 15 residiam no Paraná. No total, apenas 4 empregadores foram acionados judicialmente pela PGR na Justiça Federal. Junto com eles, mais 127 empresários de diferentes segmentos foram citados em uma lista levantada pelo Ministério do Trabalho, no ano passado.

Lista suja

Prática é mais comum no setor agropecuário, alvo de 70% das denúncias. Foto: Arquivo
Prática é mais comum no setor agropecuário, alvo de 70% das denúncias. Foto: Arquivo

O documento chamado “Lista Suja do Trabalho Escravo” traz os nomes de empregadores que foram descobertos submetendo empregados a condições análogas à escravidão no Brasil. O levantamento foi divulgado com muito custo, já que a publicação da lista tinha deixado de ser feita em dezembro de 2014 após decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Na época, Lewandowski acatou o pedido feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que solicitou o cancelamento da lista. Em janeiro do ano passado, no entanto, o juiz Rubens Curado Silveira, titular da 11.ª Vara do Trabalho de Brasília, concedeu liminar que obrigou o governo federal a publicar a lista novamente.

A União chegou a recorrer ao Tribunal Regional do Trabalho, porém a determinação foi mantida. Agora, caso sejam condenados, os empregadores podem ser submetidos à pena de 2 a 8 anos de prisão, ou mais, em casos nos quais haja comprovação de violência contra os trabalhadores.

Diante dos dados alarmantes, muitos se perguntam como, em plena era digital e no auge do acesso à informação, crimes como esse ainda sejam tão comuns no país. O problema, segundo a advogada e coordenadora do Núcleo De Enfrentamento ao Trabalho Análogo ao Escravo da Secretaria de Justiça, Trabalho e Direitos Humanos do Paraná, Silvia Cristina Xavier, está na realidade de miséria da qual a maioria das vítimas vêm, antes de serem submetidas ao serviço ilegal.

“Existe uma gama diferenciada de trabalhadores vindos de situações extremas de miséria e fome, que acabam sendo empregados nessas condições. Moradores de rua ou de zonas rurais muito isoladas e até refugiados vindos de outros países. Todos em busca de oportunidade, mas acima de tudo, sustento. Por isso acabam aceitando a informalidade e a ausência total de tutela legal no que diz respeito a registro, salário e salubridade”, explica.

Campo cruel

Foto: Arquivo
Foto: Arquivo

De acordo com um balanço feito pela Pastoral da Terra, as atividades nas quais mais trabalhadores foram encontrados em condições análogas à escravidão no Brasil, entre os anos de 1995 e 2017, faziam parte do setor agropecuário, seguido pela indústria carvoeira, do desmatamento e da construção civil. No Paraná, os casos mais frequentes são registrados nas lavouras permanentes e temporárias, no interior.

“Normalmente esses trabalhadores são iludidos pela promessa de uma vida melhor, mas quando chegam aos locais de trabalho percebem que entraram numa grande fria. Muitos acabam aceitando esses ‘contratos’ impostos por conta da fragilidade econômica e se sujeitam, por exemplo, a trabalhar em troca de comida”, explica Silvia.

Fora da lei

 

Se engana quem pensa que o trabalho análogo ao escravo implica necessariamente na ausência de remuneração. Em muitos casos o pagamento existe, porém as condições de trabalho às quais os trabalhadores são submetidos é que configuram o crime.

Previstas no artigo 149 do Código Penal, as situações que caracterizam o crime são as atividades que violam a dignidade humana, como aquelas que colocam em risco a saúde e a vida do trabalhador, jornadas exaustivas, sujeição a esforços excessivos ou sobrecargas, trabalho forçado ou mantido por meio de fraudes, isolamento geográfico ou violência, além da servidão por dívida quando o trabalhador é obrigado a contrair um débito ilegal e fica preso a ele.

De acordo com o presidente da comissão de defesa de direitos humanos da OAB/PR, Alexandre Salomão, muitos empregadores recorrem a subcontratos ou contratos de empreitada, que não geram vínculo empregatício e acabam dificultando o acionamento da justiça. “Normalmente os acordos são feitos verbalmente, sem nenhum respaldo legal. Aí valem as condições que o empregador estabelecer, sem nenhum respeito aos direitos dos empregados”, explica.

Tendo em vista alertar e proteger os trabalhadores, bem como reprimir de maneira contundente a prática, a Secretaria de Justiça, Trabalho e Direitos Humanos do Estado do Paraná assinou, em 2016, o pacto que deu origem à Comissão Estadual de Enfrentamento ao Trabalho Análogo ao Escravo no Paraná, que deve ser oficialmente instalada ainda esse mês. “O objetivo é formar uma rede de enfrentamento à prática, conscientizando os trabalhadores e punindo os empregadores ilegais”, afirma Silvia.

Apesar de lamentar o fato de que muitos trabalhadores ainda estejam submetidos à tais condições de serviço, a coordenadora reforça a necessidade de conscientização da população por meio de duas chaves: educação e informação. “A luta contra essa prática não pode parar. É preciso educar e informar esses trabalhadores para que saibam e reconheçam seus direitos”, finaliza.

Na Justiça

A Tribuna do Paraná tentou contato com as defesas de três dos empresários paranaenses que apareceram na “Lista Suja do Trabalho Escravo”, mas apenas um foi encontrado. O quarto processo corre em Londrina, sob segredo de justiça. À reportagem, o advogado Gilvano Colombo, que representa o empresário Nelson Luis Slaviero – responsável pela Fazenda Planalto, em Guaraniaçu, negou a veracidade das alegações feitas pelo Ministério Público Federal (MPF), de que os trabalhadores, responsáveis pelos serviços de limpeza e roçada de pasto fazenda, estariam trabalhando em situação degradante. A situação foi descoberta em maio de 2016 numa operação conjunta do MPF e do MPT, na qual 20 trabalhadores foram encontrados vivendo em um alojamento improvisado, feito com pedaços de madeira e coberto com lona plástica preta. As camas, feitas com galhos de árvores eram revestidas com colchonetes rasgados e sujos.

À Tribuna do Paraná, Colombo disse que as instalações na fazenda estão adequadas ao trabalho e conformes à legislação trabalhista, contando com alojamentos e refeitórios.

As defesas de José Bueno Stresser e Companhia Limitada, responsável pela Fazenda Lança, em Rio Branco do Sul na qual empregados trabalhavam na extração de eucalipto – e da empresa Sabarálcool SA Açúcar e Álcool, em Perobal, não foram encontradas. Esta última foi palco da segunda maior libertação de pessoas em condições análogas à escravidão em 2012.

Na época, o MPT registrou 125 usineiros que seriam submetidos à condições aviltantes de trabalho. Contratados por intermediadores, também conhecidos por “gatos”, os trabalhadores maioria nordestinos – estariam alojados em estabelecimentos paupérrimos, sendo obrigados a contrair dívidas com os empregadores e trabalhar aos domingos, sem nenhum poder sobre os pagamentos.

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